O dia dos avós

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Qua, 24/08/2005 - 15:02


Nós, os bípedes perdemos a cabeça, de modo a desenterrarmos datas e efemérides, por motivos que não são propriamente muito sinceros, fazemo-lo porque somos desafiados a entrar na festança, a comprar presentes, roupa e ataviar-nos em conformidade.

Aquilo que vemos ao longo do calendário nesta matéria e similares deixa um desacertado à beira de um ataque de nervos ou imbuído de um enorme complexo de inferioridade no confronto ante os amigos de todos os aniversários, comemorações, jantares mensais, semanais, de comadres e compadres, de clube, de toca, poiso e construções afins. Sou pouco dado a participar nesses sidéreos onde abundam os toucados, ouros velhos, novos e de imitação, mais as carteiras e caiações de rosto em conformidade. A minha descarada debilidade vai ao ponto de esquecer obrigações familiares em dias nomeados a merecerem respeito, obrigando-me a pedir desculpas quando esqueço o falar aos mais chegados. Após as itinerâncias, de regresso a casa, olho espantado cartões e embrulhos a lembrarem-me falhas e faltas muitas delas absolutamente indesculpáveis, apesar de o meu estranho hábito de ser inábil na marcação do livro de ponto das afinidades, ter habituado os cercanos a não se zangarem ante esta bizarria. Mas tudo tem um limite e, enquanto alimentava os olhos na contemplação de uma verdejante paisagem nas bordas da Atlântida, o meu filho mais velho tratou de lembrar o dia dos avós. Tinha visto na televisão, daí ser verdade, apesar de no país onde ele vive as datas comemorativas estarem todas trocadas em relação à Europa, com excepção do Natal e da Páscoa. O sorriso faceiro do rapaz trazia água no bico. Num estilo de moínha em dia de vento estava a sussurrar-me o ter atingido o estatuto de avô. Enquanto tentava decifrar o modo como os matizes e os ritmos das ondulações do terreno se esforçavam por aplanar as cores e os desenhos instáveis das ondas do mar e das ervas, pensei nos meus avós desabitados por terem morrido, nas suas vidas de insano trabalho sem grandes momentos propiciadores de afagos e afectos. As ondas do traz e leva das mulheres e homens a viverem no círculo fechado de Lagarelhos, das pequenas e grandes zangas perpétuas a persistirem para além do passamento, as silhuetas dos espreitadores e ouvidores de conversas mais francas em tardes de solheiro ou noites de serão também ajudavam a manter um permanente clima de intriga e soturno conflito. Neste ponto, avanço, não ser fácil um neto desenvencilhar-se da ganga de desbotados agravos para os quais nada tinha contribuído. Apesar de todo o ranço de um viver pastoso, conformado e confiado a Deus e Santos, as avós desempenhavam um papel fundamental no bom ordenamento familiar na aldeia de lagares em tempos idos. Elas amaciavam os desentendimentos entre netos e filhos, afagavam as cabeças quantas vezes piolhosas dos rebentos bem ou mal paridos, limpavam os rabos deixados a descoberto pelos calções rachados para o bom ordenamento intestinal, muitas vezes impediam os braços dos genros de socarem as faces das filhas e, entre suspiros e ais, eram bem capazes de pedirem ajuda a avarentos e usurários a fim de os netos demandarem outras paragens em busca de mantença e fortuna. Guardo óptimas recordações de muitas avós de Lagarelhos devido ao seu estrénuo defender dos seus netos e amigos. A Sra. Aurora da capela, a Sra. Albina do Graciano, a Sra. Laurinda e tantas outras que forçosamente vou deixar no tinteiro do esquecimento, mas não me permito a esquecer a Tia Maria Teresa porque não tendo netos ao pé dela, foi avó de todos os desgraçados, pedintes, ciganos e outros desafortunados que lhe solicitavam abrigo e pitança. Nunca aquela mulher negou amparo a nenhum, mesmo quando ficava temerosa, dado o aspecto furibundo ou repleto de fétidas emanações do solicitante. Muitos tipos de gente conheci na sua casa, desde o Guilherme de saco às costas até ao Paulino façanhudo especialista em desancar a burra e a mulher, até outros cujas feições me apareciam num pesadelo quando ousava ignorar o aviso do toque das Trindades. As avós desse tempo trabalhavam para além do limite, contentavam-se em ver os netos melhor do que elas, derreadas, pela noite fora ainda tinham tempo e talento para contarem histórias ou contas até os mais recalcitrantes adormecerem. Um encanto tais avós. No referente ao meu estatuto não passo de um avô de guloseima, ou seja: umas brincadeiras, uns jogos e livros. Como é norma dos não adeptos dos enlevos consumistas não festejei a data, muito menos a anotei no receituário a respeitar, mas nada tenho contra, até porque assim também se usa o amarelo!