Mais Palavras Para Quê?

PUB.

Ter, 28/06/2005 - 18:55


Do imenso rol das personagens criadas por Gil Vicente consta um bom moço, de seu nome Pêro Marques, que é suficientemente ingénuo para criar espanto e provocar desespero nos sistemas neuro-mentais alheios.

Disposto a conquistar a estouvada Inês Pereira, dirige-se a casa da afoita donzela, onde esta, algures entre a troça e a impaciência, vai revirando os olhos de pasmo perante a ignorância do pretendente. É que, desconhecendo a principal função de uma vulgar cadeira, o honesto mas simplório Pêro Marques senta-se de costas voltadas para Inês e sua mãe, dizendo, confuso e atarantado:
- Eu cuido que não estou bem…
Se as personagens vicentinas tipificam, nas suas particularidades generalizantes, tantas e tão diversas formas de se pertencer ao género humano, será difícil que muitos de nós não nos revejamos no desajuste desajeitado em que o ingénuo Pêro Marque se acha involuntariamente enredado. Porque acabamos frequentemente por nos embasbacar não só com a nossa incapacidade de compreensão, mas sobretudo com o facto dela provocar um efeito de incompreensão muito maior junto dos outros que nos olham.
Há poucos dias, nos calores do pós-almoço de um sábado pasmado, andava eu em busca de um lugarzinho moderadamente ensolarado, no parque de estacionamento de uma grande superfície brigantina. Arrumado o veículo, dirijo-me para a entrada do hipermercado, arrastando, pouco entusiasmada, o carrinho das compras e os meus pés, meio entontecida pelo sol desabrido. E vejo uma viatura, das de certo e muito lista, a ser aparcada junto à porta, no espaço reservado aos veículos para deficientes. Assim mesmo, à grande e à portuguesa. O que revela uma dose dupla de optimismo: porque o condutor em causa terá presumido que deficientes há poucos e depois, a eficiente lei das probabilidades ter-lhe-á certamente sussurrado ao ouvido que enquanto por ali andasse seria altamente improvável que algum chegasse. Mas eu, pouco amiga do chico-espertismo e nada fiada na Virgem, corri a alertar o Segurança de serviço, que não andava longe. Quando lhe relatei o sucedido e lhe expliquei as consequências daquele tipo de estacionamento desviado, o senhor Segurança olhou-me, seguro de que eu era uma ranhosa que estava ali só para o tirar do sério e dos seus certamente inadiáveis afazeres. E pergunta-me:
- E acha que vale a pena?
- Por acaso, acho.
Perdido de irritação, o Segurança fitou-me com um olhar onde se lia em rodapé: “mas esta pensa que eu não estou de serviço, é?”.
O meu olhar também disse umas coisas, mas – bolas! – esta crónica tem um título que não me permite acrescentar muito mais sobre este caso.
E agora, perplexo leitor, vou mostrar-lhe que não é só comigo que ocorrem estas peripécias de quatro rodas paradas. Porque é bom que não nos esqueçamos de que estamos em Bragança, onde o parque automóvel se arrama.
Pois, desta feita, a história fez-se com uma amiga minha, cujo carro estava ordeiramente estacionado numa rua central desta cidade, quando – já atrasada para o emprego – ela constatou que a saída estava barrada por um outro veículo. (Paciente leitor, eu temo que as minhas crónicas andem pouco originais, mas eu prometo novas experiências para breve, se a tanto me ajudar a imaginação). Enervada, a minha amiga não pensou em dar o alarme buzinístico, porque é uma pessoa que odeia ruído e até se assusta com o próprio som da sua voz rouca. Por isso, civilizadamente, procurou uma força de segurança, enfim, um agente da polícia, que – ó céus! – acabou por encontrar um quarteirão adiante. Quinze minutos mais tarde, quase empurrado e a arfar do esforço, o Sr. Guarda lá chegou, ciceronado pela minha amiga, ao local do delito, onde tudo estava exactamente na mesma. E eis que olha para o carro infractor e o reconhece.
- Mas eu conheço este carro. Muito bem, até! A senhora já buzinou? Hein? Não me diga que não buzinou…! Se não, como é que quer que ele saiba…?
- Eu? Eu, não – amedrontou-se a minha amiga, já com medo de ser autuada, por não ter querido desassossegar a rua.
- Mas então buzine, valha-me Deus! De que está à espera? Buzine, senhora! Francamente! A fazer-me perder o meu tempo…
E a minha amiga, a custo, primeiro; depois tomando-lhe o gosto; e a seguir, já quase com volúpia, lá fez o jeito ao Sr. Guarda. Quando voltou a olhar para trás, o carro já tinha desarvorado.
- Ora vê? A senhora não precisa da polícia, precisa é de uma mão forte – concluiu o Sr. Guarda, visivelmente aliviado com o resultado de tão estridente esforço. E afastou-se, certamente a pensar no percurso de volta.
Paciente leitor, faça um teste à sua capacidade de desajuste e pense: relativamente a estas duas situações, em que papel seria capaz de, mais facilmente, se rever?