Judeus

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Qua, 15/11/2006 - 10:14


Os rapazes. O ainda padre Ruivo limitava-se a olhar para nós, sob as sobrancelhas, de baixo para cima, enquanto a mão direita volteava a capa para cima do ombro esquerdo. Impunha respeito e quietude.

Os rapazes alinhados em bancos corridos respondiam às perguntas da catequista, batendo compassadamente as pernas à espera do fim da catequese, para depois correrem no claustro da Sé, debaixo do olhar sereno e piedoso do Senhor da Cana Verde. Seria da Cana Verde? Iam passar à condição de cruzados de Cristo e, convinha saberem a “doutrina.” O imponente sacerdote seria padrinho da maioria, na altura de receberem o sacramento da confirmação. Os judeus apareciam vaidosos, inchados de orgulho, aplicados na urdidura de atormentar Jesus Cristo, mas esperava-os a condenação eterna. Nas procissões de grande aparato simbólico, a representação de judeus gerava descontentamentos junto dos escolhidos expressos numa rejeição gestual ou numa fala lenta, já ir vestido de soldado romano agradava a todos. As procissões eram lentas como convinha e quando começávamos a subir a Rua Direita os meus olhos fixavam uma “lata” enrugada, dona de verdete, estampada na fachada de um prédio, no qual uma médica-dentista chumbava e arrancava dentes. A dita “lata” em tempo menos abafado e mais livre, indicava ali existir uma Sinagoga. Ao olhá-la tinha um pouco de compaixão pelos judeus, começando por Anás e Caifás os quais seguiam à minha frente em passo lento e balançado. Na cidade havia pessoas que juntavam ao patronímico o acrescento de judeu. Não por vontade deles, mas dos outros. Um senhor, sapateiro, reagia mal quando os pérfidos rapazes assomavam à oficina e gritavam – judeu. Estávamos na década de cinquenta, do século XX. Passou-se muito tempo para pela primeira vez contemplar a Sinagoga e o cemitério judaico de Amesterdão. Na altura, não escondi a emoção ao ler o nome de tantos judeus portugueses aferrados à bela cidade, por terem sido perseguidos e expulsos da sua terra natal, onde viviam uma meia-vida abruptamente tornada impossível pela intolerância reinante. O papel dos nossos conterrâneos na criação de riqueza na sociedade holandesa está amplamente documentado, as suas querelas teológicas e filosóficas também. Uma coisa é certa: naquele tempo, eles não deixaram ninguém indiferente nos círculos cultos da Europa. Aqui há uns anos levei o meu filho mais velho à cidade de Rembrandt, na Sinagoga falámos dos malditos delinquentes juvenis que profanam cemitérios e não respeitam o valor da diferença. Deve ter entendido. Mais de metade da minha vida já passou, estou a trabalhar num projecto de recuperação, preservação e interpretação da cultura judaica, o que muito me agrada. No verão voltei a Amesterdão, enquanto observava gentes de todas as cores e feitios não deixei de pensar em Oróbio de Castro, bragançano, placa de rua modesta, ilustre e controverso pensador, a quem em devido tempo procurei homenagear através de uma proposta visando a criação de um prémio destinado a honrá-lo. Pensei em mulheres e homens notáveis e singulares figuras, muitas delas oriundas de Bragança e terras do Nordeste, a necessitarem de serem estudadas e reabilitadas. Pensei nas procissões e no uso pejorativo do termo – judeu, por nás e nefas de uma educação marcada pelo tacanho, apertado e sombrio entendimento do Mundo, em que homens pretensamente cultos, eruditos até, dados ao pensamento, defendiam e exaltavam o reino circular onde “o povo quando mais inculto melhor.” Um transmontano o escreveu, meus caros leitores. Não fiquem espantados, nem incrédulos, na asneira também somos muito bons!