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Interior e Fronteira, o caso de Bragança: deve e haver (I)

Ter, 10/10/2006 - 11:07


Quero começar por agradecer ao Sr. Director do Diário Económico e à Administração da Caixa Geral de Depósitos o convite que me foi endereçado para estar hoje aqui.

Propus-me falar-vos sobre o tema, Interior e Fronteira, o caso de Bragança: deve e haver.
Este parece ser um tema contabilístico, mas só na aparência: o deve é algo que nos vens do passado; o haver já respeita ao futuro. É impossível falar deste, sem ter presente aquele.
Há uma vasta zona do país, comummente conhecida por Interior e, dentro desta ou a ela contígua, uma zona de Fronteira.
Ambas percorrem o país de Norte a Sul e, nomeadamente a Norte do Tejo, apresentam uma história e uma situação similares, sendo comuns muitos dos problemas com que se defrontam. Mas tenho para mim que Fronteira e Interior são duas realidades que colocam questões distintas.
Haveria ainda que falar em Periferia, mas, por facilidade de exposição, vou incluir o conceito de periferia no de Interior.

Como Fronteira esta zona nasce com o país. Outras fronteiras existiram antes de Portugal, mas é o nascimento deste que condiciona os últimos oito séculos e meio. Assim o conceito de zona de Fronteira nasce muito antes do conceito de zona de Interior.

Como Interior esta zona define-se progressivamente: primeiro em relação à capital, sendo também, nesse sentido, uma zona de periferia; em segundo lugar, e aqui fixa-se definitivamente, em relação ao litoral. Esta situação consuma-se a partir dos séculos XV e XVI com as descobertas: esta epopeia, por muitos, talvez a esmagadora maioria, considerada como a idade de ouro de Portugal, marca também o apogeu do fascínio pelo mar, para onde passou a correr o sangue do país; mas marca igualmente o sério início do declínio desta zona: com o país virado para fora, as regiões do interior fornecem mão-de-obra e é tudo. A sangria nunca mais parou, até hoje, mantendo-se em cada época por razões diversas, mas tendo seguramente aquela origem.
Dito isto, facilmente se percebe que muitas das questões que aqui vou tratar podem ser ditas de todas as zonas de Fronteira e de todas as zonas de Interior do país. É de uma questão nacional que se trata. Porém, apesar do que têm em comum, as várias zonas apresentam diferenças significativas entre elas.
Dados os meus limitados conhecimentos, mas também por razões do coração e porque estou aqui, decidi apresentar-vos algumas reflexões pessoais assentes na realidade de uma dessas zonas de Fronteira que é também uma zona de Interior e periférica: a zona de Bragança, nome por que designarei o que, em termos gerais, é o distrito de Bragança.
Este é um tema actual, pois

- as zonas de Fronteira subsistem, apesar do tratado de Shengen e do abandono dos pontos de passagem;

- também as zonas de Interior continuam uma realidade: apesar dos modernos meios de comunicação, há zonas que continuam muito longe da capital, agora cabeça gigante de corpo franzino; apesar de ter chegado ao fim o ciclo do império ultramarino, a seiva do país continua a correr sobretudo para o litoral.

A continuidade destas duas realidades – Fronteira e Interior - gera perplexidades que obrigam a pensar seriamente e a perguntar: porquê e como chegámos aqui?; que forças bloqueiam aquela que seria uma evolução racional das coisas?
Na sua simplicidade, considero estas perguntas essenciais. A procura de respostas envolve-nos como cidadãos, pois implicam questionarmo-nos como país e como região. Não está em causa sabermos a quem atribuir as culpas, já que a reflexão deve incidir tendências longas, que duram séculos, na evolução do nosso país e desta zona.
Sei que este tipo de reflexão não está na moda, pois é enorme a pressão dos problemas imediatos já que estes que doem, agora mesmo. Não os quero desvalorizar, bem pelo contrário. Mas há uma reflexão de fundo que nunca pode ser abandonada: é ela que nos permite olhar para nós, como colectividade nacional e como região, que nos deixa perscrutar a cadeia da história que trouxe até aqui, que nos leva a perceber como decisões e rumos tomados há centenas de anos ainda projectam a sua influência até aos dias de hoje, tal como as decisões e os rumos tomados hoje marcarão o futuro.

Comecemos por nos posicionar nos dias de hoje, e façamos um ponto da situação, ainda que muito sintético:
- em que situação se encontra esta zona de Bragança, no início do século XXI?

Deixem-me usar uma imagem que pode ser mais sugestiva do que longas descrições: esta zona está numa situação semelhante à da menina que vai à fonte e partiu a cantarinha, procurando apanhar-lhe os cacos.
Os cacos que procura apanhar são bem conhecidos de todos: ontem o comboio que deixou de apitar; depois vários serviços públicos que se foram ou não vieram; agora as escolas e as maternidades; e as aldeias vão morrendo; e os jovens vão saindo. Qualquer dos presentes não teria dificuldade em acrescentar a lista.
Quero deixar bem claro o que penso sobre a cantarinha que há muito se vem estilhaçando: ela não é um paraíso perdido e a água que nela contida há muito que se tem vindo a inquinar ou já não mata a sede.
Coloco agora outra questão, já que esta zona está integrada numa comunidade nacional: que imagem desta zona se foi criando ao longo dos séculos?
Cada um dos presentes sabe que há sobre esta zona as mais diversas ideias, umas mais outras menos simpáticas. Entre essas várias ideias, concentremo-nos apenas em duas delas, dado o relevo que têm vindo a assumir:

- a primeira ideia diz: vocês são um peso, dão um prejuízo enorme ao país, gastam muito mais do que pagam em impostos. Por isso concluem os que assim pensam: é um desperdício gastar dinheiro com essas regiões (de Interior ou de Fronteira), deixemos que a voragem do tempo faça o seu trabalho, e depois logo se vê; gastem o que produzem e ponto final.

Por Amadeu Ferreira *
* Conferência proferida no âmbito do Conselho Aberto da CGD, a 29 de Setembro de 2006
(Continua no próximo número)