A guitarra de Acúrcio

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Ter, 03/10/2006 - 16:36


Acúrcio Martins, oriundo de Izeda, protagonista de uma experiência mal sucedida no domínio das artes culinárias expressas em actos gastronómicos de relevo no restaurante Real Feitoria em Bragança, mereceu adequada atenção num almoço ocorrido em São João da Pesqueira, por motivo de uma guitarra.

Por força do Congresso da Federação das Confrarias Gastronómicas consegui a proeza de os meus excelentes amigos que são o Virgílio Gomes e António Monteiro, especialistas na área da gastrofosia, notáveis zurzidores dos rústicos armados em defensores dos carmes localistas como sendo da mesma estirpe dos de Dante, no que à nona arte tange – a gastronomia, comigo partilharem conversa plena de alacridade onde por causa de umas ostras o guitarrista Acúrcio veio à baila. Sou um incondicional apreciador de ostras nas mais variadas representações, nunca me esqueço dos amigos, melhor dito não os ostracizo, descubram a razão da frase: “ foi votado ao ostracismo” e, porque o Amílcar Malhó propicia festins de ostras acompanhadas por champanhe na terra do “Elmano Sadino”, lembrei-me dos pecados da gula cometidos em Vigo por causa deste marisco acéfalo. O demónio da memória tentou o Virgílio, daí ele ter-se lembrado de uma ida à cidade galega tendo como incumbência principal adquirir uma guitarra para marido da proficiente cozinheira que é a Dona Adozinda, mas cuja carreira restaurativa na cidade bragançana foi interrompida porque assim tinha de ser. Podem acreditar. E não estou a tentar restabelecer a inocência de muitos dos apreciadores de comida da terra onde nasci, mas a formação do gosto não se compra nas farmácias, não se consegue através de cursos tirados por correspondência e muito menos a dizer que as laranjas apenas eram comidas pelos fidalgos de Freixo. É grande o meu embaraço quando percorro as ruelas da minha vivência no tempo da eclosão das guitarras eléctricas, muito antes da tentativa de Acúrcio ser um digno sucessor dos rapazes de Liverpool. Na altura, a rapaziada brigantina adorava bailes em locais esconsos, sendo muito apreciada a música tangada num amplexo revelador das habilidades dos dançarinos, pois um e uma deram-se ao luxo de apostar em como conseguiam dançar em cima de um tijolo. A invasão dos Beatles começou pelas botas de cano, roupa escura e aumento das cabeleiras. Os moralistas encartados, resolutos a pensarem com os sapatos, não usavam tamancos, desaprovavam tais exibições e, o Fernando “Rei-Preto” mereceu a devida atenção por deixado crescer o cabelo. A clareza não fazia parte do discurso oficialista, a ameaça e censura sim, numa evidente demonstração que as trevas ainda persistiam em determinados círculos citadinos. As guitarras eléctricas eram coisa fina e cara, só os meninos bem, mesmo assim poucos, se davam ao luxo de as conseguirem por altura da quadra natalícia ou quando faziam anos. Os seus detentores provocavam invejas e, na solidão no meio das palavras vertidas, os monstros da destruição impunham-se, refreados pelo medo da punição. Afogada a inveja, uns continuavam a frequentarem os bailes nas garagens, outros amealhavam dinheiro na esperança de comprarem um disco dos do “Submarino Amarelo”, já os mais dados à desesperança no arranjar dinheiro, modelavam guitarras em madeira alindadas por arames. A crónica vai adiantada, estando-me vedado, pelo menos nesta peça, ser indiscreto, até impúdico no dar a minha visão do circuito das guitarras por muitos espaços, nesses anos de sufoco vivencial. No entanto, porque provocaria danos irreparáveis nas guitarras, preferi adquirir ao Virgílio um gravador Grundig, pago a prestações, instrumento precioso e imprescindível para passar músicas dos cabeludos nas tardes chuvosas dos dias de semana, porque aos domingos a música era outra, começando a festa bailadora após o almoço até as meninas recolherem aos casulos protectores. Mas um dia, cometi um erro a provocar furiosa reclamação e a levar as autoridades até ao aprazível reduto. Um Arcanjo fez vista grossa e as dançarinas puderam sair sem as faces ardentes pelo medo da denúncia. Ainda bem, para elas!

PS. Neste glorioso almoço, dedicamos atenção a um cabrito assado sem grande deslumbramento. Não se pode ter tudo!