A greve da nobreza de toga

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Ter, 25/10/2005 - 15:28


A nobreza de toga vai entrar em greve, acompanhada pelos seus adjuntos, leia-se funcionários judiciais. A “noblesse de robe” reivindica para si o estatuto de orgão de soberania e, também o de funcionário público de modo a compatibilizar a majestade, o estatuto superior da sua condição acima do comum dos mortais com a do operário, do proletário sindicalista saído da carta de Amiens, para justificar a greve.

As pessoas sensatas entreolham-se, murmuram, porque isto de tecer opiniões acerca desta “noblesse” pode por ela ser mal interpretado e, os especialistas escrevem longos artigos relativos à inusitada greve. Prefiro tentar ver o efeito da greve pelo lado do chamado País real, o do povinho amante do petisco ao fim de tarde, das telenovelas, das transmissões de futebol, do gastar dos dias raspando a unha do polegar nos parcos euros da reforma, enfim da generalidade das pessoas. Tais pessoas estão-se nas tintas para a greve da impante nobreza descontente porque lhe retiram privilégios perfeitamente descabidos numa Nação à beira da bancarrota, sem cheta e sem perspectivas de vir a tê-la. Esta borrifadela das gentes tem de ser encarada como um encolher de ombros dos amarrados a uma vida feita de receio do tribunal, suportada na certeza de a justiça ser lenta e custosa e apenas entendível pelos chamados operadores judiciários. A esmagadora maioria do povo prefere na tasca partilhar tremoços e opiniões relativas ao súbito rejuvenescimento do Nuno Gomes, do que tentar perceber a dita greve. Para o povo mais mês, menos mês na conclusão de um processo é igual ao litro, já está habituado a esperar, a ser permanente testemunha de um facto ou acto ocorrido há anos, do qual já nem se lembra, tendo apenas bem viva na mente a despesa da deslocação ao tribunal a fim de ser citado e, mandado embora porque o julgamento, mais uma vez, foi adiado. Ainda há dias o Estado português recebeu outra condenação nas instâncias comunitárias devido à lentidão da justiça. No caso em apreço, um cidadão português ficou na miséria devido a ter sido enganado por um “banqueiro” e passados dezasseis anos ainda não recebeu a indemnização a que tem direito. Obviamente, noutro plano esta greve tem um alcance e um significado profundo no entender do papel dos juízes na sociedade. Na minha meninice e primeira adolescência tomei suplementos de chá educacional a dizerem-me ser absolutamente obrigatório dar o passeio ao Senhor Juiz e tirar a boina, a gorra ou o boné no momento de ele passar por nós. O Sr. Corregedor morava em casa à parte junto à Moagem Mariano e as filhas dos senhores juízes que andavam a estudar no Liceu eram – as filhas do juiz. Cautela! Porque cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, assim o confirma o rifoneiro. O juiz era uma figura tutelar e algo distante, embora pudesse, subitamente, passar a figura de proximidade quando acontecia um facto extraordinário, assim a modos da facada recebida pelo famoso juiz Bernardino, numa ruela da cidadela. As mudanças sociais ocorridas nos últimos trinta anos também colocaram os senhores juízes debaixo dos focos das luzes da ribalta, pelas boas e as más razões. Por outro lado a prolixidade do legislador e uma mais constante exigência na afirmação dos direitos ou supostas razões dessa mesma afirmação trouxeram aos tribunais milhares e milhares de processos. No entanto, apesar de todas as razões dos juízes e magistrados, a greve em causa vai suscitar a maior das indiferenças e risos de mofa na Comunidade em geral, algumas piadas nos círculos políticos e a apreensão por parte de todos quantos pensam no prestígio das Instituições. Como os senhores juízes sabem a “noblesse de robe” destronou a nobreza de espada, e a partir daí tem tido um papel fundamental no evoluir da sociedade desde a Idade Moderna, apesar de detestada por Luís XIV, nunca por nunca, deixou de em todas as circunstâncias de participar ou às vezes estar na crista da onda de importantes movimentos sociais ocorridos na velha Europa. A populaça e os criminosos nutrirem aversão e ódio contra os senhores juízes só nos deve alegrar, mas no povo, do qual todos nós fazemos parte, crescer o sentimento de indiferença, quando não de hostilidade em relação a eles deve-nos obrigar a reflectir, porque a justiça ser cada vez mais cara e ser cada vez mais pachorrenta é uma certeza que temos e conviria erradicar. Para bem de todos!
Armando Fernandes
Muitos milhares de milhares de trabalhos sobre a nobreza povoam as Bibliotecas. Acerca da noblesse de robe vale a pena ler Carré, “Noblesse” , Lavisse, “Histoire” e Forster, “Nobility of Toulouse”.