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As Formigas, os Incendiários e os Pirómanos

Ter, 15/11/2005 - 17:22


Numa dada tarde do último Verão, quando desfrutava do prazer da pesca, presenciei uma imagem verdadeiramente espantosa, digna, mesmo, de ser captada pela objectiva do “National Geographic”: uma formiga, provavelmente assustada por se ter perdido da sua gregária comunidade, tropeçou numa pedra.

A pedra, por sua vez, como resultado do embate provocado pelo insecto, rolou através de um declive de dois/três metros, indo chocar violentamente contra outra; dando origem, por fricção dos dois corpos, a um pequeno foco de incêndio, que só não se propagou – o que resultaria num cenário de inevitável destruição – devido à minha pronta e eficaz intervenção. Desoxigenei-o, pondo-lhe um pé em cima.
Esta passagem, ironicamente fantasiada, que só é verosímil aos olhos de uma criança que se encontre, em termos de estrutura mental, no estado de desenvolvimento que os psicólogos designam por intuitivo ou pré-operatório, faz-me lembrar o argumento do “ cu da garrafa”, utilizado, no mais puro surrealismo, para se justificar a maioria dos incêndios florestais que arrasam este país, na época estival.
Retive, algures, uma máxima interessante, cujo autor não consigo identificar, que, não obstante ser produzida num contexto diferente, se encaixa, na perfeição, neste fenómeno que se “institucionalizou”, em virtude da incapacidade, da inércia e do comodismo de alguns, como sendo uma saga irreversível, um fatalismo, algo que está para além da intervenção humana: “Nenhum país verga, quando se fala a verdade”.
A meu ver, a vaga de incêndios em Portugal, contrariamente aos implacáveis tsunamis, que têm fustigado impiedosamente algumas das regiões do continente asiático, da América central e dos EUA, é um problema de fácil resolução, porque apenas depende da vontade humana. E para erradicar de vez esta maldição, responsável, este Verão, por mais de 300.000 hectares de área ardida, era necessário, num discurso de verdade, atacar o mal pela raiz.
Pois, um país como o nosso, depauperado economicamente como está, não se pode dar ao luxo de esbanjar avultadas quantias de dinheiro, quer na aquisição de meios de combate aos incêndios (helicópteros, aviões e quejandos), quer através de mecanismos de reparação de prejuízos a quem, em verdade, sai “queimado” desta situação.
O que significa, então, “atacar o mal pela raiz”? Significa, antes de mais, ter-se a lucidez e a coragem suficientes para identificar e desbaratar os verdadeiros culpados, apertando-lhes o cerco; porque só por gracejo se pode atribuir (não digo que, pontualmente, não posso acontecer) a origem dos incêndios a causas naturais.
Mas para que este trabalho possa ser bem sucedido, importa fazer a distinção, por uma questão de justiça, entre duas espécies de agentes causadores (autores materiais) deste flagelo: incendiários e pirómanos. Os primeiros agem em plena consciência dos actos que praticam. Fazem-no, ou por sua iniciativa, porque a própria personalidade os faz incorrer em actos de pura selvajaria gratuita, ou, a mando de alguém – autores morais que nunca são julgados -, em troca de favores monetários. Os segundos obedecem a registos de comportamentos compulsivos. São indivíduos que se comprazem perante cenários de destruição e terror por eles provocados. São, à luz do Direito penal, sujeitos inimputáveis, porque doentes. Para ambos, que se afiguram, nestas circunstâncias, como sérias ameaças, ainda que se movam segundo objectivos e motivações distintos, não pode haver outra alternativa, a bem da memória colectiva, do valioso património florestal e cinegético, senão encaminhá-los, no uso, claro está, de adequados mecanismos legais, para lugares onde lhes seja impossível potenciar os mais básicos instintos.
Outra ideia errada que se faz passar – provavelmente com base em recolhas estatísticas totalmente falaciosas – é a de que os foguetes, lançados nas festas, são os responsáveis pela maioria dos incêndios. A minha experiência diz-me precisamente o contrário. Nas festas das aldeias, pelo menos nas minhas duas (Vale de Frades e S. Joanico, do concelho de Vimioso), conhecidas por terem uma larga tradição pirotécnica, tanto em qualidade, como em quantidade, nunca me lembro de ter havido um incêndio causado pelo lançamento de foguetes. Admito que, num caso ou noutro, tais objectos possam ter provocado pequenos fogachos, mas nada que as minhas gentes, com o seu reconhecido espírito de entreajuda, que os envolve nas mais elevadas causas, não fossem capazes de controlar. Por esse motivo, estranho muito que tenha sido decretada a restrição total do lançamento de material pirotécnico nas épocas festivas.
Há duas razões fundamentais que me levam a encarar com bastante cepticismo a eventualidade de um dia se acabar definitivamente com a praga dos incêndios: por um lado, a forma como se concebe, neste país, a ideia de parceria, de trabalho em rede – sendo certo que os grandes problemas sociais serão mais fáceis de resolver com a prática de tal metodologia. É vergonhoso, como aconteceu no verão passado, estando o país a arder, a instituição Bombeiros e o INEM entrarem em conflito por causa da ridícula e mesquinha disputa de competências. Por outro, é a ideia de que os incêndios, com algumas coincidências e, em muitos aspectos, de contornos pouco claros, podem, eventualmente, ser um negócio muito rentável para os insaciáveis interesses corporativos. Contudo, não sem o sentencioso reparo do cidadão comum, nas malhas da Judiciária – tida como uma das melhores policias de investigação do mundo – só caem peixes miúdos; normalmente bêbados e malucos.
Se não for possível controlar o fogo, a existir, que sirva, numa perspectiva católica da compreensão do universo, para purificar algumas almas.