Falta de sensibilidade escondeu pinturas murais em Agrochão

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Sex, 25/09/2020 - 17:42


Obra do século XVI foi redescoberta em capela no concelho de Vinhais

Foi descoberta, na aldeia de Agrochão, concelho de Vinhais, na capela de Nossa Senhora do Areal, uma pintura mural do século XVI que não é uma verdadeira surpresa, já que a sua existência não era, afinal, desconhecida. Corria a década de 80 do século passado e já o assunto era trazido ao conhecimento das gentes da região quando o cónego Belarmino Afonso, considerado, por muitos, um dos maiores vultos do nordeste transmontano, publicava na revista “Brigantia”, de que foi director, que ali existia aquele mural. “Fomos alertados para o achado pelo pároco, Padre Justino Castanheira. Nos fins de Dezembro de 1984, dias antes do Natal, ali nos dirigimos. (…) A superfície pintada apareceu casualmente, ao remover o pequeno altar-mor, para obras de restauro e consolidação”, contava então Belarmino Afonso. Agora, segundo avançou o pároco da aldeia, Paulo Pimparel, a descoberta da pintura, que ali permanecia atrás do altar-mor da capela, deu- -se nas mesmas circunstâncias. Foi necessário voltar a restaurar-se o pequeno altar- -mor, que acolhia a santa que dá nome à capela e, ao retirá- -lo, a imagem voltou à luz do dia. “Se recuarmos à década de 80, numas obras realizadas pelos populares ao altar-mor, tanto quanto sei e averiguei junto da comunidade, constatou-se a existência dessas pinturas, mas a sensibilidade era a que era e, portanto, o altar voltou a ser colocado e as pinturas resguardadas atrás dele”, justificou o padre, acrescentando não ter mais dados sobre o assunto mas mostrando que algumas pessoas saberiam o que ali estava.

 
“Tratar bem este património”
Para o padre Paulo Pimparel, a pintura mural, que já está a ser analisada e tratada, na capela onde não há culto com regularidade, onde a comunidade, por norma, só se desloca no primeiro domingo de Agosto, na celebração em louvor da Nossa Senhora do Areal, “obviamente que, passado quatro décadas, é difícil estar a imaginar o que é que as pessoas da altura sentiram e decidiram” e, por isso, “agora o mais importante é valorizar o presente, a redescoberta feita e tratar bem este património” já que há “obrigação” de o passar aos que hão- -de vir. A importância que está agora a ser dada à pintura também não é uma novidade. Já na década de 80, quando o cónego Belarmino Afonso a ela se reportava, no artigo mais antigo sobre a imagem, de que há conhecimento, foi, de imediato, percebida a preciosidade que ali estava. “Passaram os autores. Ficaram as obras. Saibamos ao menos conservá-las para que as nossas raízes culturais não sequem, mas vivifiquem um presente que também se reconhece no passado que o gerou”, lê-se na revista Brigantia. Questionando-se sobre que escola ou escolas artísticas existiriam na região ou se teriam sido artistas de fora a dar-lhe vida, o cónego afirmava que, “em termos de comparação com o que temos hoje, bem podemos dizer que houve declínio”. “Perdeu-se toda uma tradição artística que deixou marcas duradouras nas igrejas das nossas terras”, assinalava ainda.
 
Pintura mural já está a ser analisada
Joaquim Caetano, restaurador de pintura mural, há perto de 40 anos, também suspeitava do que podia estar naquela capela. A colaborar, neste momento, com o Centro de Conservação e Restauro da Diocese de Bragança- -Miranda, para analisar e tratar o achado, como de resto acontece com outras descobertas ligadas à pintura mural, nesta região, o restaurador já tinha estado em Agrochão, há cerca de 20 anos. “Quando cá vim o retábulo encontrava-se no seu lugar e não pude aferir se a pintura cá estava ou não. A mordoma que veio comigo não tinha memória da existência de tal”, assumiu, dizendo que a curiosidade foi despertada depois de ter conhecimento do que o cónego Belarmino escrevera. O aparecimento de uma pintura mural atrás de um retábulo, segundo explicou Joaquim Caetano, que esteve em Agrochão há pouco mais de uma semana, “não é uma coisa inédita em Portugal”. Para o perito, se a pintura do século XVI e anterior chegou até hoje foi porque ficou escondida atrás destes altares. “Aquilo que foi, de algum modo, a sua condenação foi simultaneamente a sua salvaguarda” pois “a partir do momento em que fica escondida desaparece da vista e da memória das pessoas e fica lá”. Após a descoberta, “a opção poderia ser restaurar o retábulo e voltar a colocá-lo no lugar” mas “era mau” porque, além da pintura não poder ser contemplada também não se poderia “controlar” o seu estado de conservação. Visto que a pintura mural não será novamente tapada pelo altar-mor, agora, segundo explicou ainda Joaquim Caetano, “o que há a fazer é tratá-la com muito cuidado”. Ou seja, encontrando- -se num estado em que “alguns pontos estão em risco de ruir”, numa primeira fase será fixado o que pode, porventura, não aguentar muito mais tempo. Após se tratar do mais urgente, a pintura será limpa porque “tem um depósito de poeira que não permite uma boa leitura”. Quanto aos traços e partes de figuras que irremediavelmente se perderam, nada será reconstruido. “Não podemos inventar. Perde-se-ia a sua autenticidade. Vamos minimizar os danos e tentar anular a sua interferência na leitura”, vincou o restaurador. Com a pintura mural a voltar a ocupar o espaço que lhe estava destinado, o altar- -mor será colocado num outro local, onde a sua permanência faça sentido, naquela mesma capela onde também pertence. “Haveremos de encontrar outra forma”, confirmou o padre Paulo Pimparel, que assumiu ainda que é sua intenção que a imagem ali fique para ser “admirada” pelos que lá quiserem ir.
 
 Tema mariano
A pintura, que “se nunca tivesse estado atrás do que esteve teria menos danos”, do ponto de vista iconográfico representa um retábulo fingido, “uma representação relativamente vulgar em Trás-os- -Montes”. Perante um tema mariano, em Agrochão retratou- -se, ao centro, a coroação de Nossa Senhora. Já do lado direito, segundo explicou Joaquim Caetano, há uma anunciação e, do lado esquerdo, duas figuras que, associadas a este tema mariano, poderão ser os pais de Nossa Senhora (São Joaquim e Santa Ana). “Temos ainda mais duas figuras, que são de mais difícil percepção. São dois monges, com dois hábitos diferentes, em segundo plano, um parece-me dominicano e outro franciscano”, adiantou ainda o especialista, que acredita que as figuras, de alguma forma, poderão ter uma ligação com quem terá encomendado a obra ou podendo a ermida ter estado ligada a uma ordem religiosa.
 
Região rica em pintura mural
Do ponto de vista da qualidade formal, a pintura da capela de Agrochão “é excelente” e “haverá poucas com este grau de refinamento”. Distinguido-se pela delicadeza e perfeição dos traços, é uma das centenas que se crê existir. Só na região, em Miranda do Douro, Torre de Moncorvo, Mogadouro e Alfândega da Fé, após um trabalho de investigação, Joaquim Caetano identificou 35 pinturas murais. “A densidade é relativamente grande e umas vezes conserva-se mas há casos em que são quase completamente destruídas pela falta de sensibilidade das pessoas”, assinalou o especialista, que diz que “não se pode falar de crimes de vandalismo” porque houve épocas em que se deu prevalência a outras coisas. Ciente de que haveria muita mais gente a pintar que aquilo que se imagina, Joaquim Caetano acredita que haveria oficinas de pintura a fresco e que os artistas percorreriam vários locais para dar vida a este género de arte que, dentro da sacra, “é a que fica mais barata” . “Pensado nestes 35 exemplares e estendendo ao resto do distrito e a Vila Real, Guarda, Porto e Minho, onde há muita pintura mural, percebe-se que há centenas destas obras que as pessoas desconhecem”, afirmou o especialista.
 
Agrochão aplaude redescoberta
A pintura mural “não foi uma descoberta para todos” porque “há pessoas que puderam presenciar os trabalhos que se fizeram e a realidade das pinturas”, assumiu o padre Pimparel, que disse que, “de facto, o sentimento de redescoberta é de felicidade”. Agora, depois de restituir à aldeia o que da aldeia sempre foi, resta que o património não esmoreça. “A introdução da talha barroca involuntariamente conservou esta preciosidade que, de outro modo, teria desaparecido. O aparelho onde a pintura assenta é pobre. De barro aplicado sobre o muro de xisto, perder-se-á irremediavelmente porque está a desprender-se da parede”, lia-se na Brigantia e, 36 anos depois, espera-se que o anunciado não se cumpra pois “conhecemos mais pinturas murais em capelas e igrejas do distrito mas esta parece-nos das mais valiosas”, reiterava Belarmino Afonso.
Jornalista: 
Carina Alves