Foi descoberta, na aldeia de Agrochão, concelho de Vinhais, na capela de Nossa Senhora do Areal, uma pintura mural do século XVI que não é uma verdadeira surpresa, já que a sua existência não era, afinal, desconhecida. Corria a década de 80 do século passado e já o assunto era trazido ao conhecimento das gentes da região quando o cónego Belarmino Afonso, considerado, por muitos, um dos maiores vultos do nordeste transmontano, publicava na revista “Brigantia”, de que foi director, que ali existia aquele mural. “Fomos alertados para o achado pelo pároco, Padre Justino Castanheira. Nos fins de Dezembro de 1984, dias antes do Natal, ali nos dirigimos. (…) A superfície pintada apareceu casualmente, ao remover o pequeno altar-mor, para obras de restauro e consolidação”, contava então Belarmino Afonso. Agora, segundo avançou o pároco da aldeia, Paulo Pimparel, a descoberta da pintura, que ali permanecia atrás do altar-mor da capela, deu- -se nas mesmas circunstâncias. Foi necessário voltar a restaurar-se o pequeno altar- -mor, que acolhia a santa que dá nome à capela e, ao retirá- -lo, a imagem voltou à luz do dia. “Se recuarmos à década de 80, numas obras realizadas pelos populares ao altar-mor, tanto quanto sei e averiguei junto da comunidade, constatou-se a existência dessas pinturas, mas a sensibilidade era a que era e, portanto, o altar voltou a ser colocado e as pinturas resguardadas atrás dele”, justificou o padre, acrescentando não ter mais dados sobre o assunto mas mostrando que algumas pessoas saberiam o que ali estava.
“Tratar bem este património”
Para o padre Paulo Pimparel, a pintura mural, que já está a ser analisada e tratada, na capela onde não há culto com regularidade, onde a comunidade, por norma, só se desloca no primeiro domingo de Agosto, na celebração em louvor da Nossa Senhora do Areal, “obviamente que, passado quatro décadas, é difícil estar a imaginar o que é que as pessoas da altura sentiram e decidiram” e, por isso, “agora o mais importante é valorizar o presente, a redescoberta feita e tratar bem este património” já que há “obrigação” de o passar aos que hão- -de vir. A importância que está agora a ser dada à pintura também não é uma novidade. Já na década de 80, quando o cónego Belarmino Afonso a ela se reportava, no artigo mais antigo sobre a imagem, de que há conhecimento, foi, de imediato, percebida a preciosidade que ali estava. “Passaram os autores. Ficaram as obras. Saibamos ao menos conservá-las para que as nossas raízes culturais não sequem, mas vivifiquem um presente que também se reconhece no passado que o gerou”, lê-se na revista Brigantia. Questionando-se sobre que escola ou escolas artísticas existiriam na região ou se teriam sido artistas de fora a dar-lhe vida, o cónego afirmava que, “em termos de comparação com o que temos hoje, bem podemos dizer que houve declínio”. “Perdeu-se toda uma tradição artística que deixou marcas duradouras nas igrejas das nossas terras”, assinalava ainda.
Pintura mural já está a ser analisada
Joaquim Caetano, restaurador de pintura mural, há perto de 40 anos, também suspeitava do que podia estar naquela capela. A colaborar, neste momento, com o Centro de Conservação e Restauro da Diocese de Bragança- -Miranda, para analisar e tratar o achado, como de resto acontece com outras descobertas ligadas à pintura mural, nesta região, o restaurador já tinha estado em Agrochão, há cerca de 20 anos. “Quando cá vim o retábulo encontrava-se no seu lugar e não pude aferir se a pintura cá estava ou não. A mordoma que veio comigo não tinha memória da existência de tal”, assumiu, dizendo que a curiosidade foi despertada depois de ter conhecimento do que o cónego Belarmino escrevera. O aparecimento de uma pintura mural atrás de um retábulo, segundo explicou Joaquim Caetano, que esteve em Agrochão há pouco mais de uma semana, “não é uma coisa inédita em Portugal”. Para o perito, se a pintura do século XVI e anterior chegou até hoje foi porque ficou escondida atrás destes altares. “Aquilo que foi, de algum modo, a sua condenação foi simultaneamente a sua salvaguarda” pois “a partir do momento em que fica escondida desaparece da vista e da memória das pessoas e fica lá”. Após a descoberta, “a opção poderia ser restaurar o retábulo e voltar a colocá-lo no lugar” mas “era mau” porque, além da pintura não poder ser contemplada também não se poderia “controlar” o seu estado de conservação. Visto que a pintura mural não será novamente tapada pelo altar-mor, agora, segundo explicou ainda Joaquim Caetano, “o que há a fazer é tratá-la com muito cuidado”. Ou seja, encontrando- -se num estado em que “alguns pontos estão em risco de ruir”, numa primeira fase será fixado o que pode, porventura, não aguentar muito mais tempo. Após se tratar do mais urgente, a pintura será limpa porque “tem um depósito de poeira que não permite uma boa leitura”. Quanto aos traços e partes de figuras que irremediavelmente se perderam, nada será reconstruido. “Não podemos inventar. Perde-se-ia a sua autenticidade. Vamos minimizar os danos e tentar anular a sua interferência na leitura”, vincou o restaurador. Com a pintura mural a voltar a ocupar o espaço que lhe estava destinado, o altar- -mor será colocado num outro local, onde a sua permanência faça sentido, naquela mesma capela onde também pertence. “Haveremos de encontrar outra forma”, confirmou o padre Paulo Pimparel, que assumiu ainda que é sua intenção que a imagem ali fique para ser “admirada” pelos que lá quiserem ir.
Tema mariano
A pintura, que “se nunca tivesse estado atrás do que esteve teria menos danos”, do ponto de vista iconográfico representa um retábulo fingido, “uma representação relativamente vulgar em Trás-os- -Montes”. Perante um tema mariano, em Agrochão retratou- -se, ao centro, a coroação de Nossa Senhora. Já do lado direito, segundo explicou Joaquim Caetano, há uma anunciação e, do lado esquerdo, duas figuras que, associadas a este tema mariano, poderão ser os pais de Nossa Senhora (São Joaquim e Santa Ana). “Temos ainda mais duas figuras, que são de mais difícil percepção. São dois monges, com dois hábitos diferentes, em segundo plano, um parece-me dominicano e outro franciscano”, adiantou ainda o especialista, que acredita que as figuras, de alguma forma, poderão ter uma ligação com quem terá encomendado a obra ou podendo a ermida ter estado ligada a uma ordem religiosa.
Região rica em pintura mural
Do ponto de vista da qualidade formal, a pintura da capela de Agrochão “é excelente” e “haverá poucas com este grau de refinamento”. Distinguido-se pela delicadeza e perfeição dos traços, é uma das centenas que se crê existir. Só na região, em Miranda do Douro, Torre de Moncorvo, Mogadouro e Alfândega da Fé, após um trabalho de investigação, Joaquim Caetano identificou 35 pinturas murais. “A densidade é relativamente grande e umas vezes conserva-se mas há casos em que são quase completamente destruídas pela falta de sensibilidade das pessoas”, assinalou o especialista, que diz que “não se pode falar de crimes de vandalismo” porque houve épocas em que se deu prevalência a outras coisas. Ciente de que haveria muita mais gente a pintar que aquilo que se imagina, Joaquim Caetano acredita que haveria oficinas de pintura a fresco e que os artistas percorreriam vários locais para dar vida a este género de arte que, dentro da sacra, “é a que fica mais barata” . “Pensado nestes 35 exemplares e estendendo ao resto do distrito e a Vila Real, Guarda, Porto e Minho, onde há muita pintura mural, percebe-se que há centenas destas obras que as pessoas desconhecem”, afirmou o especialista.
Agrochão aplaude redescoberta
A pintura mural “não foi uma descoberta para todos” porque “há pessoas que puderam presenciar os trabalhos que se fizeram e a realidade das pinturas”, assumiu o padre Pimparel, que disse que, “de facto, o sentimento de redescoberta é de felicidade”. Agora, depois de restituir à aldeia o que da aldeia sempre foi, resta que o património não esmoreça. “A introdução da talha barroca involuntariamente conservou esta preciosidade que, de outro modo, teria desaparecido. O aparelho onde a pintura assenta é pobre. De barro aplicado sobre o muro de xisto, perder-se-á irremediavelmente porque está a desprender-se da parede”, lia-se na Brigantia e, 36 anos depois, espera-se que o anunciado não se cumpra pois “conhecemos mais pinturas murais em capelas e igrejas do distrito mas esta parece-nos das mais valiosas”, reiterava Belarmino Afonso.