A Eterna Sombra dos Mirandelenses

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Ter, 31/10/2006 - 15:57


Há alguns meses atrás, escrevi neste jornal, por ocasião dum jogo de futebol entre Mirandela - Bragança, um artigo a enaltecer o elevado comportamento dos apoiantes dos dois clubes, por entender que é no desporto que as pessoas, enquanto seguidoras, revelam os seus traços de personalidade, o bom e o mau feitio.

Quis crer, na ocasião, porque nada fazia supor o contrário, que o velho fantasma da rivalidade doentia, que tanto havia comprometido as boas relações entre estas duas comunidades, estava morto, pertencia ao passado.
Eis que, sem surpresas para os mais cépticos, a avantesma, que, na pior das hipóteses, se supunha adormecida, regurgitou em consequência do encerramento da Maternidade de Mirandela, por pensarem os da cidade do Tua que os culpados dessa decisão haviam Contrariamente ao que se pensa na “capital da alheira”, creio que não há nenhum bragançano, mentalmente equilibrado, mesmo que não tenha intenção de parir, como dizia um senhor da Fradizela, instado a comentar o polémico assunto, que não esteja solidário com os mirandelenses, em relação à irreparável perda da maternidade, ou a qualquer outra situação que os enfraqueça. Daí que, como bragançano, ache desonesto e pouco elegante que os mirandelenses, provavelmente instigados pelo incapacidade de aceitar a natural posição de “subalternização” que liga a sua cidade à capital de distrito, tenham criado à volta deste tema um folclore tal, ao ponto de nos apontarem como “piratas”, como causadores da desgraça que lhes bateu à porta.
Pode-se dizer, ao fim de contas, que esta atitude, além de reveladora dum manifesto e indiscutível “mau – perder”, funciona como um indicador que nos permite suportar a ideia de que as gentes de Mirandela e de Bragança divergem, notoriamente, entre si, em traços psicológicos e comportamentais. Os bragançanos, perante a adversidade e o afrontamento, agem de forma passiva, resignada; os mirandelenses, em virtude do seu reconhecido espírito bairrista, são lutadores, não deixam que lhes pisem em cima, movem-se por causas comuns, principalmente as próprias, as da quinta.
Alguns exemplos concretos ilustram, pois, esta indesmentível realidade, a saber.
As famigeradas alheiras de Mirandela encerram uma história bastante curiosa. Diz-se, segundo registos próprios da oralidade, que a zona da Lombada, no concelho de Bragança, era conhecida, já em meados do século XIX, pela qualidade da alheira que ali se fazia. Tal reconhecimento permitiu que o referido produto tivesse considerável procura nos grandes centros, nomeadamente no Porto e em Lisboa. Como na altura – estamos a falar do período que vai de 1887 a 1906 - os transportes públicos eram inexistentes, e só havia comboio a partir de Mirandela, os agricultores destas aldeias transportavam, numa primeira etapa, as alheiras, de burro, até ao “Oásis do Nordeste”. Chegadas aí, as caixas onde as ditas iam embaladas levavam o carimbo da Estação de Caminhos - de - Ferro de Mirandela; e, uma vez no destino, por engano, eram consumidas como se fossem produzidas na “Princesa do Tua”.
Até hoje, que se saiba, nunca ninguém de Bragança reclamou o registo da patente deste produto; nunca ninguém apresentou queixa, nem denunciou este “plágio gastronómico”.
Por decisão política, Mirandela foi escolhida para receber, em finais da década de 1970, com base no critério geográfico, a sede da Direcção Regional de Agricultura de Trás – os – Montes – casa a que orgulhosamente pertenço.
Também aqui não houve qualquer oposição por parte dos bragançanos.
Em 2004, julgo, foi criada uma Escola de Hotelaria em Mirandela, em detrimento das demais vilas e cidades do distrito.
Foi ainda Mirandela contemplada, se não estou em erro, entre 2005/2006, em prejuízo, por exemplo, de Miranda, terra da boa gastronomia, de Freixo, terra do inconfundível vinho Montes Ermos, e de Vinhais, terra do fumeiro, com os serviços da ASAE (Autoridade da Segurança Alimentar e Económica), resultante da fusão da Direcção de Serviços de Qualidade Alimentar ( da DRATM) com os Serviços da Inspecção Geral das Actividades Económicas; e também com a Delegação Regional do Ministério do Ambiente (CCDRN).
Houve, porventura, reacções (de natureza política ou de outra) por parte de quem eventualmente saiu prejudicado? De forma alguma!
É, sem dúvida, esta forma egoísta de estar na vida e, em particular, na política, em que queremos, como diz o povo, um Deus para nós e um Diabo para os outros, que me leva a não acreditar no tão desejado espírito de transmontaneidade. Ainda recentemente o líder do partido Nova Democracia, numa breve visita a Mirandela, com o simpático propósito de se solidarizar com os mirandelenses, por causa da Maternidade, acentuou a ideia da necessidade de se criar esse espírito, através dum movimento cívico que congregasse todos os transmontanos, com o supremo objectivo de, em conjunto, verterem para o plano da realidade aquilo que isoladamente é impossível: a força para reclamar os mais elementares direitos.
Ora, Congregar significa, na linguagem bíblica, unir o rebanho, juntar as partes, fazer das causas dos outros as nossas próprias causas, sentir os problemas dos outros como se fossem verdadeiramente nossos.
Neste sentido, Mirandela não se sente atraída por esta ideia. Por um lado, porque o Presidente da Câmara, Dr. José Silvano, que, reconheça-se, se pode gabar de ter uma cidade exemplarmente limpa, bonita, atractiva, sem cães a vaguear na rua, nem a fazerem o serviço nos passeios e espaços verdes da cidade, e de potenciar ao máximo as verdadeiras dádivas da Natureza, como é o caso do rio Tua, tem mais visibilidade, mais protagonismo, se rivalizar e ombrear com Bragança na reclamação de direitos, serviços e infra-estruturas para a sua quinta. Por outro, porque os mirandelenses são culturalmente educados para pensarem que Bragança se afigura, antes de mais, como o eterno rival, a velha sombra que os ofusca.
Estas são, naturalmente, condicionantes que travam o progresso desta nossa região. Ao nada fazermos, ao cruzarmos os braços, ao adoptarmos comportamentos egoístas, na lógica anti – transmontana do “cada um por si”, não nos conseguimos impor perante o litoral e os modelos que, à viva força, nos querem impingir, e nos quais não nos revemos.

N.B. Queria agradecer ao venerando leitor, José Ventura, de Miranda do Douro, residente em Almada, o gesto simpático de se dirigir à minha pessoa nos termos em que o fez, em carta enviada para este jornal, publicada na edição de 26/9/2006.
Também para ele, em jeito de devolução, aquele abraço sentido de transmontano.