Divididos pela pergunta

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Qua, 31/01/2007 - 10:57


No próximo dia 11, responderemos à pergunta: «Concorda com a despenalização do aborto, se praticado em clínica autorizada pelo Estado e por livre decisão da mulher, até às dez semanas de gestação?» Por isso, o que está aqui em causa é, essencialmente, a despenalização do aborto. Invoca-se que despenalização não é o mesmo que liberalização.

No plano dos significados, não é, de facto, o mesmo. Mas, na realidade, a despenalização abre o caminho à liberalização. Se houver despenalização, há lugar ao exercício da liberdade de fazer aborto. Umas mulheres fá-lo-ão, outras não, no exercício da liberdade de fazer ou de não fazer, conforme o seu livre-arbítrio. Logo, o aborto, tornar-se-á legal, em resultado de uma decisão pretendidamente livre da mulher (e que mulher abortará sem estar profundamente constrangida pelas circunstâncias?). Logo, sendo livre – porque a pergunta não impõe limites à sua prática -, fica liberalizado.
Liberal significa, originalmente, tolerante perante a liberdade dos outros. Foi este o sentido com que, diz-nos Francisco Vergara (2002: 6 ), a palavra apareceu na Europa, em 1809, no contexto das guerras peninsulares, importada de duas fontes de ideias: o liberalismo aristocrático de Thomas Jefferson (EUA) e o liberalismo dos direitos humanos do Conde de Turgot (França). Mas a estya liberdade acrescentou John Stuart Mill, em 1859, em On the Liberty, uma condicionante: «os homens são livres de fazerem o que quiserem desde que não prejudiqum terceiros».
Outra questão central é a da responsabilidade pelo aborto, «por decisão da mulher». Então, a vida que cresce no útero da mulher só a implica a ela? Não implica nem o pai nem a sociedade? Esta não terá uma palavra a dizer? O não implicar obrigatoriamente pelo menos o pai na decisão parece-me machista.
E o feto? Tem ou não direito a viver? O primeiro direito humano sobre o qual se alicerçaram todos os outros não foi, no liberalismo, o direito à vida, extraído do direito natural? E não foi deste direito que derivaram todos os outros direitos, designadamente a teoria do bem maior quando há conflito entre direitos? Que deve fazer o homem que não tem dinheiro para comprar o medicamento que pode salvar a mulher? Deixar morrer esta ou assaltar a farmácia? Obviamente, assaltar esta. E quando é que o feto pode ser morto? Obviamente, quando ponha em causa gravemente a vida e a saúde da mãe, quando ponha em causa gravemente a integração económica, social e laboral da mãe e quando venha a afectar gravemente a autonomia e a liberdade do futuro ser.
O aborto é a negação de um direito, natural e humano, fundamental. Logo só deve ser praticado excepcionalmente e em nome de um direito maior e mais valioso. A sociedade deve ser organizada para que não seja necessário abortar. Uma sociedade justa e responsável convida e ensina as pessoas a terem uma sexualidade responsável e sã.
Mas, como também disse Rousseau (Du Contract Social, 1762), a sociedade não é composta por santos mas sim por Homens, muitas vezes incapazes de resistir às paixões, ao erro e ao azar. Esta é uma realidade que exige uma resposta social, escolhendo-se entre a penalização/ ilegalização e a despenalização/ legalização do aborto. Reconheço que seria bem mais fácil escolher se a despenalização da prática do aborto estivesse circunstanciada e se o número de abortos fosse limitado a um ou, no máximo, dois. Assim, está latente um conflito de valores muito profundo que pode fazer perigar o direito à vida.
Os liberais do Século XIX, avisados por Benjamin Constant (Príncipes de Politique, 1821) contra o Terror das generalizações, nunca fariam uma pergunta tão abstracta. Porém, os democratas, na Europa e aqui, pouco avisados e inexperientes, vão reinventando todas as formas de democracia totalitária . Aprenderão com o tempo. Ou com a tragédia.

Henrique Ferreira