“…Digno de ir ao jornal”

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Ter, 04/10/2005 - 14:47


A expressão que dá o título a este texto é utilizada, recorrentemente, pelo povo, sempre que confrontado com situações quotidianas, que, à luz das nossas convenções sociais, vão para além dos parâmetros normais do humanamente razoável; dando origem, quantas vezes, a incontrolados sentimentos de revolta e indignação, vulgarmente exteriorizados sob a forma de desabafo espontâneo.

No recurso à comparação: “isto parece um país da América Latina! “, ou fazendo uso do mais económico mecanismo da língua: “…só neste país…!”
A crítica de hoje, por se reportar a um caso desagradável, senão tétrico – tem igualmente a particularidade de conter os pressupostos que motivam reacções incontidas -, não tem por objectivo julgar atitudes ou procedimentos que fogem à moral republicana, mas chamar a atenção para a forma desapiedada com que neste país as questões do foro sentimental se subordinam às meras disposições legais.
No passado dia 16 de Setembro, por volta das 14.45 horas, na cidade de Bragança, faleceu, vítima de acidente de mota, um jovem de 20 anos, filho e sobrinho de pessoas com as quais mantenho uma indelével relação de amizade há mais de 30 anos.
Transportado para o hospital local, o óbito devia ter sido confirmado, provavelmente, antes das 15.30 horas. A família, profundamente consternada, e no mais profundo sofrimento, foi informada de que a autópsia só podia ser feita na próxima 2ª Feira, dia 19; porque, ao contrário da vizinha Espanha, os exames que permitem avaliar as causas da morte, em Portugal não se realizam aos fins – de – semana, por “indisponibilidade” do Ministério Público (entidade que os autoriza) e dos Gabinetes de Medicina Legal, que são quem os executa.
Como se pode imaginar – se isso é possível a quem nunca experimentou o perturbante vazio da perda -, tanto pelas circunstâncias da própria morte, como pela idade de quem definitivamente de nós se despediu, invertendo-se, assim, a Lei natural da vida ( os filhos “ enterram” os pais), a família foi obrigada a arrastar a dor e o sofrimento, com todo o desgaste físico e psicológico que estes momentos implicam, durante o mais longo fim – de – semana das suas vidas.
Às 9 horas da fastidiosa 2ª Feira, o mínimo que se podia esperar era que todas as formalidades legais estivessem concluídas, para se proceder à respectiva autópsia. Mas não. Na primeira abordagem feita pela família - muito para lá do início da hora de expediente -, junto da funcionária do gabinete Médico – Legal, em consequência da demora, e num habitual ping – pong de atribuição de responsabilidades, foi dada a justificação de que a Polícia não tinha enviado ainda o “Ofício” para o Tribunal; o que sem ele não era possível ao Ministério Público autorizar a autópsia, o que implicava a consequente “libertação” do cadáver. Todo este impasse só foi ultrapassado já muito perto das 12.30, o que inviabilizou, mesmo assim, a possibilidade do funeral se realizar nesse dia; o que viria a acontecer na 3ª Feira, obviamente com toda a carga dramática e violência que estas situações provocam.
Perante esta realidade fria e cruel, chega-se à conclusão de que, no país do Faz – de – Conta, onde só é “permitido” morrer de Segunda a Sexta (durante o período da manhã), há uma grande falta de respeito pela dor alheia. Um caso de morte à Sexta - Feira à tarde, ainda que implique, como se sabe, o desencadear dum processo complicado, e que obedece a certos trâmites legais, não pode ter o mesmo tratamento, em termos de entraves burocráticos, dum processo de atribuição dum alvará de licenciamento, ou de uma certidão das Finanças.
Sem mais comentários, direi que este caso, infelizmente não isolado, reflecte, por um lado, a mentalidade lusa; e, por outro, a incapacidade de estabelecer prioridades, por parte de quem tem Autoridade para o fazer. Pois, por muito importante que seja levar a tribunal, num fim – de – semana, um individuo que se apresentou, no exercício da condução, com uma taxa de álcool superior ao permitido por lei, ou julgar um criminoso apanhado em flagrante delito – dois exemplos, entre outros, que justificam o aparecimento da figura do Tribunal de Turno -, não se pode estabelecer qualquer paralelismo, no que diz respeito ao carácter de “urgência”, com o drama causado pela perda de uma vida humana. Afinal de contas, o espírito que preside aos Tribunais de Turno, às “Finanças de Turno”, aos “ Hospitais de Turno”, às “Escolas de Turno”, aos “Serviços Camarários de Turno”, etc.., não está na lei que os sustenta, nem em meros suportes legais, mas na cabeça de cada um de nós.

António Pires