Dia de Todos-os-Santos

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Qua, 02/11/2005 - 15:12


No tempo em que os “animais falavam” os “Santos” proporcionavam um dia agradável aos lagarelhenses. A festa começava na véspera.

Pela noite fora, os rapazes davam azo à imaginação a fim de conferirem importância crítica às travessuras. Nesse tempo existiam carros de vacas, arados, charruas e grades à mão de semear, de modo a sustentarem complicadas construções onde entravam portais após lhe terem sido retiradas as bisagras, engaços, picaretas, caniços, carretas e tudo quanto pudesse mostrar a via criadora da rapaziada e arreliadora dos mais velhos.
Logo pela manhã, mesmo muito cedo, levantava-me e, num virote, dava a volta ao povo de modo a contemplar as arriscadas composições, sem me esquecer de ouvir as vernáculas exclamações de homens e mulheres envoltas numa dose indiscriminada de assentimento gargalhado. A festa continuava pela tarde fora consubstanciada em magustos ruidosos, pingados em conformidade pelos novos e velhos, onde os enfarruscados se faziam notar de tal modo, que um ou outro até ganhou alcunhas por causa de se tisnar. As castanhas reassumiam o seu importante papel no conspecto alimentar dos povos do Nordeste, o qual o perdeu para bem dos mais pobres e carentes, a favor da batata a partir de finais do século XIX. Sobre o basilar papel das castanhas não vou tecer considerações nesta crónica.
No dia de Todos-os-Santos reservava-se espaço para o arranjo das campas dos entes queridos desaparecidos, porque no dia seguinte honrava-se a sua memória. A tenra idade não me fez esquecer os trabalhos dirigidos pela minha avó, no embelezamento da sepultura da minha mãe. Carreirinhos de flores cruzavam-se naquele espaço sagrado, devolvendo-me a mim a constatação da sua perca, da qual ao contrário dos procedimentos “normais” dessa altura, eu a senti porque fui infeliz e inconsciente testemunha da sua agonia, do seu velório e enterro. Anos a fio, sempre que ia a Lagarelhos o meu primeiro acto era “visitá-la” naquele cemitério encostado à Igreja.
Hoje, não tenho essa possibilidade porque aquando da “construção” do novo campo dos mortos, na ocasião, os “inteligentes” de um qualquer mando não avisaram ninguém, preferindo remover a esmo as ossadas de todos os ancestrais da comunidade. Tais “inteligentes” não sabem, ou não calculam o desgosto infligido aos vivos por ficarem sem a possibilidade de tempos a tempos poderem reavivar a lembrança dos seus mortos, não por qualquer persistência de uma “patologia do luto”, sim porque o sentimento do pesar prevalece pelos anos fora. E, ainda bem, pois quando assim não acontece, algo está mal na mente dos que ficaram.
Ante esta realidade, procuro homenagear a minha mãe, ouvindo o Requiem, especialmente o de Mozart apesar de incompleto, o de Fauré e, não posso esquecer a Sinfonia de Requiem de Britten. O dia de Todos-os-Santos e o de Fieis Defuntos revestiam-se de solenidade abafada no contexto da aldeia. Mesmo os mais empedernidos eram obrigados a lembrarem-se dos mortos. De todos os mortos e da morte, que mais dia, menos dia também os iria visitar.
O Mundo dos Mortos sempre imprimiu receio e temor ao homem, daí a constelação de rituais funerários em todas as civilizações. Milhares e milhares de documentos nos mais variados suportes o atestam. Sem pretender ater-me a uma qualquer ortodoxia, será impensável no meu caso, não sendo defensor da tradição enquanto incapacidade de distinguir entre o permanente e o temporário, o essencial e o acidental, mantenho o genuíno valor tradicional de respeito pelos mortos. Não me interessam as manifestações exuberantes e espectaculares de lamúria, antes procuro meditar acerca da morte e a vida possível ou impossível do morto. A pompa e a circunstância no acto do enterramento é de uma vacuidade atroz, o significante nos idos de cinquenta serem dadas moedas ou géneros aos acompanhantes de enterros, merece-me atenção e estudo. A minha amiga e distinta historiadora Maria Ângela Beirante realizou um notável trabalho sobre a história da morte em Portugal nos séculos XIII e XIV. Vale a pena ser lido e reflectido.
E enquanto rememoro os mortos que mais me tocaram ou influenciaram, familiares ou não, adormeço a dor ouvindo os compositores acima referenciados ou prantos lançados por muitas vozes, das quais destaco a de Mateo Salvatore. Ela é a expressão pungente da angústia e do dó, expurgada da teatralidade ou fingimento das carpideiras. Em vésperas destes importantes dias, nada melhor que a voltar a ouvir, após ter escrito esta crónica de veneração aos Mortos.

P.S.: Aos interessados proponho a leitura de: “Morte e Luto através das Culturas”, coordenação de Colin Murray Parkes, e “O Reino dos Mortos, na Idade Média Peninsular”, direcção de José Matoso.