Comeres do Nordeste em Santarém

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Ter, 25/10/2005 - 15:13


É complexa a prática alimentar do homem através dos tempos. O cru, o podre, o cozido, o fervido e o assado continuam a ser pomo de intervenção e discussão nos fóruns especializados. Os magistrais trabalhos de Claude Lévi-Strauss fizeram escola, dando azo a revisitarmos os clássicos em busca de modos e modelos em torno da conduta alimentar de todos nós.

Estudam-se os escritos de Apício, Aristófanes, Aristóteles, Cassiodoro, Juvenal, Lúculo, Petrónio, Plínio o Velho, Varrão e tantos outros a fim de entendermos os alimentos sagrados, os alimentos interditos, o canibalismo e os enigmas alimentares como sustentação de supremacias, porque o património gastronómico se revela da maior importância para entendermos o processo civilizatório. Vem isto a propósito dos vinte e cinco anos do Festival Nacional de Gastronomia que se desenrola em Santarém. Estive e participei na sua primeira edição, tenho estado sempre e, mais uma vez participei na jornada dedicada aos comeres do Nordeste Transmontano. Antes, tive o grato prazer de na companhia do Virgílio Gomes e do António Monteiro, especialistas na matéria, participar no Congresso que congregou gente interessada e deu a conhecer boas comunicações. Pois bem, no dia 22, o Nordeste Transmontano teve o seu dia, estando a apresentação e representação do almoço a cargo do Restaurante “O Geadas” de Bragança. As entradas – presunto, salpicão, alcaparras e folar – deram ao gourmet, gourmand ou simplesmente comilão a possibilidade de afagarem o estômago com expressões de produtos do Nordeste de modo fagueiro e folgazão. No entanto, para mim, a memória do gosto – aquela que perdura e nos faz voltar ao local onde fomos felizes – centrava-se no centeio, nos cuscos com ossinhos de porco à moda de Vinhais, mais o guisado de repolgas com chouriça. Em casa da minha avó materna os cuscos faziam parte dos comeres usuais, enquanto o amor às repolgas me obrigavam a borrifar com água quente o tronco onde elas cresciam. Os ossinhos denotavam apuro na confecção, os cuscos a lembrarem familiares desaparecidos, as repolgas empolgantes a dizerem quão benéfico é possuirmos raízes memoralísticas de felicidade. Só por isso, o almoço já valeu a pena. Se terminasse nessa altura, ninguém ficaria aborrecido. Mas, o Sr. Adérito entendeu apresentar um caldo de perdiz agradável pelo sabor e porque afagou o palato de forma a apreciarmos devidamente as trutas de escabeche do Baceiro e do Tuela. Confesso à puridade que preferia o escabeche um pouco mais refilão ou excitante, assim a modos de mais envinagrado. O butelo com cascas cumpriu bem a função de exemplificar a argúcia dos nordestinos em transformarem produtos residuais num prato façanhudo e de referência no conspecto do receituário regional. O pudim de castanhas, a graciosa tarte de grão-de-bico, a tarte de amêndoa e o doce de abóbora remataram em conformidade esta refeição opulenta que obrigou a cozinheira a operar em condições de apuro dado os desfasamentos de apresentação dos pratos. Em matéria de beberes o branco “Montes Ermos” e o tinto reserva “Cistus” acompanharam condignamente o festim.
Em jeito de adenda, tenho todo o gosto em referir o facto de os produtos apresentados pelo “Dom Roberto” de Gimonde estarem a lograr grande aceitação e a merecerem encómios de gente sabedora e interessada. Ainda bem.