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Comentar é Preciso

Qui, 29/06/2006 - 10:39


Passava a mão pelo cabelo. Devagar. Como para marcar uma intenção ocasional deixada pelo efeito rápido das palavras ditas em linha contínua.

De forma tão natural como a nossa sede de ouvir as imagens de um conflito que cabia inteirinho no nosso ecrã. Trazido por um “repórter” de estúdio, seguro de tácticas, convicto de estratégias e certo do efeito que fazia prender os espectadores.
Era em 1991, durante a Guerra do Golfo. E quem ouvia, então, as explicações absurdamente minuciosas sobre os efeitos dos mísseis Scud, a Tempestade do Deserto, ou o mais que certo avanço das forças americanas à luz de um plano ali tornado vivo, não podia deixar de pensar a realidade como uma certeza infinitamente mais próxima do que as impressões no ecrã poderiam fazer crer. A guerra era comentada em directo e as imagens faziam-se quase desnecessárias sob o poder das palavras que anunciavam, como numa revelação, os movimentos das etapas seguintes. Como se em presença de um “contador de histórias”, capaz de recriar sugestões e efeitos explicativos, a realidade, por si, se tornasse quase supérflua.
Estava lançada a semente para o comentário televisivo que caiu no terreno sempre fértil do desejo de armazenar rápida e eficazmente o maior número possível de informações. Muito, em pouco tempo. Máximo efeito com o menor esforço. E é sabido que mais facilmente são retidas as informações “explicadas” sob o modelo de comentário do que os dados apresentados em forma de notícia ou de reportagem. Porque estas levam à necessidade de ver, ouvir, contextualizar, reflectir, integrar na informação já recolhida, para, finalmente, se poder formular uma perspectiva que resulte de um processo baseado na observação e análise. E isso leva muito do nosso tempo e dá muito trabalho, sem garantia de bons resultados.
Quem é que se dá à pachorra de se sentar a descascar feijões, para, de seguida, os pôr de molho, se – espertamente – se pode dar ao conforto de abrir uma lata (de proveniência incerta) e fazer alegremente a festa? Quem?
Quem gosta de correr riscos. Já que pensar por uma cabeça que não seja a nossa é uma das muitas formas de viver perigosamente. Porque há sempre uma dose (familiar) de inconsciência na passividade (quase) tácita com que se aceita as práticas teorias dos comentadores estrelares que – audiência obriga – pejam os vários canais das nossas televisões. Para além do conforto que lhes é dado na ausência de réplicas (um comentador a solo não é posto em causa, tem sempre razão, torna-se mais convincente e, consequentemente, mais perigoso), há a perversidade do factor “independência”. Não exercendo cargos políticos, a sua credibilidade cresce e – em igual proporção – a sua influência aumenta. Porém, não deixa de ser curioso que a sua filiação partidária – que é quase uma prerrogativa – pareça ser sempre relegada para uma plano obscuro; ou porque é “irrelevante” ou porque é inconveniente. E aqui reside um estranho paradoxo: ser membro de um partido instalado faz subir a cotação de um comentador, mas essa filiação nunca é plenamente arrogada; porque diluída numa suposta independência que só as câmaras conseguem filtrar.
Cada comentador de serviço assume-se como um ser asséptico que-nunca-é-candidato-a-coisa-alguma-e-que-não-visa-qualquer-fim-político e que está ali apenas pelo bem da nação e para prestar o prestimoso serviço público de mostrar o que, “de facto”, se passa.
O formato de comentário televisivo tem esta vantagem pragmática do 2 em 1: enquadrado no contexto da imagem, parece sempre depender de um facto que, a alturas tantas, já é apenas meio facto ou mais do que facto e meio. Visto que o comentador liquidifica parte da realidade através do efeito centrifugador da sua análise “lúcida e objectiva”.
E é aqui que é bem-vinda a nossa preguiça mental que, por efeitos da sua gloriosa capacidade de absorção, vai ingerindo fórmulas enlatadas de “pensamento crítico” que resultam numa mistura homogénea de digestão assepticamente rápida, mas muito desejada. Assim se explica que metade do País não perca pitada desse alto momento televisivo do serão de domingo, protagonizado por um credenciado “artista” português. Que, num passe de mágica capacidade analítica, faz o apanhado reinventado dos acontecimentos que fazem falta à cultura geral da malta. Na segunda-feira, logo de manhãzinha, todos nós saberemos o que pensar sobre “essas matérias” em que assenta a espuma pouco consistente dos nossos dias.
É o pensamento alheio ao pensar que está na origem da expressão “fazedores de opinião”, que revela o comodismo e a inércia mental de quem quer o “já feito” para consumo imediato. De quem abocanha o “pronto a pensar” para não ter de pensar.