Casos

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Ter, 06/06/2006 - 15:57


1 - A zona histórica de Bragança está invadida por hordas de soldadinhos de chumbo.

Com uma só perna. Como aquele do conto de Hans Christian Andersen que se apaixonou por uma bailarina e acabou reduzido às cinzas da vingança de um sinistro gnomo saído de uma caixa, que o fez ser lançado para a lareira. Mas em Bragança, os soldadinhos de chumbo têm muito mais sorte: é que, apesar da sua evidente limitação física, estão afincadamente atarraxados à borda dos passeios, como um exército disciplinado, disposto a guardar as fronteiras milimétricas das parcas vias por onde os veículos rolam, no ó-pra-baixo e ó-pra-cima da Bragança antiga. Enquanto os condutores vão imaginando as tão indesejáveis como prováveis situações em que, por força do espaço excessivamente “militarizado”, se vejam reduzidos à imobilidade total.
Pois, há duas semanas, circulava eu, na minha viatura, vinda do Polis e com passagem garantida pela Rua dos Combatentes da Grande Guerra, onde os soldadinhos de chumbo se perfilam, conscienciosos de um dever permanentemente cumprido. Quando, subitamente, paro o carro na descida que antecipa a subida para o largo de S. Vicente, porque o veículo que me precede se imobiliza. Tal como o que está antes dele. E o que o precede. E o que está antes desse. E o que está imediatamente atrás de um autocarro ecológico do qual saíram três senhoras que ficaram paradas no passeio, sem saber se haveriam de subir ou de descer a rua. Comecei por pensar que o autocarro tinha parado para facilitar a saída das senhoras e a sua deslocação na cidade que pareciam não conhecer demasiado bem. Mas acabei por perceber que o autocarro ecológico estava, de facto, e realmente, imobilizado, em plena Rua Direita.
Parada a fila dos carros e parado o tempo, alguns condutores aproximaram-se do motorista do autocarro que, constrangido, os esclareceu sobre a avaria de que o seu veículo tinha sido vítima: “Já chamei o técnico. Só temos que esperar que ele venha”. Pois claro. E o cortejo dos carros engrossava a par do espanto de todos aqueles que se apercebiam de que estavam, ali, literalmente cercados por uma multidão dos tais soldadinhos de chumbo que os impediam de tentar qualquer saída. E não era difícil imaginar o pânico que se poderia desencadear numa situação de emergência, na qual o socorro dificilmente chegaria. A não ser que fosse por via aérea, suponho. Talvez seja essa a solução para neutralizar as “forças militares” terrestres: construir um heliporto sobre o telhado de uma das muitas casas por ali desocupadas. Digo eu. É que não têm que ser só os soldadinhos de chumbo a estar ao alto. Ponhamos, também, os corações.

2 – Em Bragança, durante muitos anos, houve uma sala de cinema que ficará para sempre conhecida como Cine Teatro Torralta. Que soube evoluir na sensibilidade com que os filmes foram sendo seleccionados, a par da generosidade com que sempre disponibilizou três sessões diárias para o público utente. Sem quaisquer constrangimentos causados pelas horas de menor afluência, como eu própria confirmei em muitas sessões das 14 horas. O que, evidentemente, revelava esforço financeiro e grande apreço pelo público brigantino.
Como todos sabemos, o princípio do fim do Cine Teatro Torralta começou há dois anos, quando essa grande estrutura nacional chamada Castello Lopes Cinemas poisou no atractivante Fórum Theatrum. E, como um bulldozer, luzidio de novidade, abalroou aquela que era a sala de cinema de Bragança, incapaz de concorrer com a modernidade das instalações, as quatro sessões diárias e a pegajosamente viciante pipocaria da praxe com que o novo gigante estonteou os brigantinos.
Dois anos depois, as três salas Castello Lopes mantêm, naturalmente, as suas modernas instalações, os seus filmes de grande público e as sempre esparramantes pipocas. Mas foi posto um fim a todas as sessões da tarde que tinham lugar de segunda a sexta-feira, mantendo-se, apenas, as do fim-de-semana. O que é incompreensível, porque mesmo que essas sessões tivessem pouca afluência, uma estrutura como a Castello Lopes deveria garantir a variedade do horário com que se implantou em Bragança. E mais incompreensível se torna se compararmos a forma como, nesse domínio, o Cine Teatro Torralta serviu fielmente o público brigantino durante tantos anos.
Neste caso, David não venceu o Golias de serviço. Mas há vitórias que são mais esclarecidas pelo tempo do que pelo tamanho dos contendores.

3 – Fernando Lopes Graça foi homenageado, em Bragança, no sábado passado, pelos cem anos do seu nascimento. A Direcção Regional de Bragança do PCP organizou esta comemoração que incluiu uma exposição e palestra (esta, excessivamente explicativa: não havia assim tantas crianças na sala, afinal…) sobre a vida e obra do “artista genial, maestro de Abril, militante comunista”. A que se seguiu, também no Auditório do Conservatório de Música, um concerto de piano no qual Fausto Neves interpretou peças de Lopes Graça. E fê-lo de tal forma, que composições como a “Moda da Segada”, de Vinhais, ou a Sonata Nº 1 (escrita em 1934) ganharam uma existência viva. Que as tornou capazes de criar novas possibilidades para lá do que os temas sugeriam ou poderiam fazer crer.
E além da soberba interpretação do pianista Fausto Neves, foi bom ver que Bragança entende a universalidade da linguagem com que a música aproxima os seres humanos. Sem partidarites. Cantando, na música de Lopes Graça, as palavras de José Gomes Ferreira: “Havemos de chegar ao fim da estrada / Ao sol desta canção”.