Burristeiros

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Ter, 13/09/2005 - 15:50


O dicionário da Academia não regista o termos burrista. Mas o meu estimável Cândido não se esquece dele. Os burristeiros são trapaceiros.

Nos intermináveis jogos no jardim António José de Almeida quando um menino fazia batota era imediatamente acusado de burristeiro e, pelo menos nessa tarde não jogava mais. O castigo surtia efeito, levando os adeptos do truque a deixarem-se dessa prática, porque ser arredado do jogo tinha consequências nefastas para os prevaricadores. Desde esse tempo aprendi a jogar limpo, sem berlindes escondidos, tendo levado tal estilo de actuação para outros jogos e outras formas de vida, mesmo pagando juros elevados por tal procedimento. A lealdade, a frontalidade e amizade são valores que muito prezo, daí não pactuar a nenhum título ou preço com burristeiros de consciências, de negociatas e muito menos de traição a esses mesmos valores. O devir do tempo fez atravessar-se no meu caminho muitos batoteiros, de todos os calibres e de ambos os sexos. No entanto, tais caloteiros da dignidade não conseguiram vergar-me e assim espero continuar. Os custos desta prática são elevados, mais a mais quando a burristice é entendida nalguns círculos como símbolo de esperteza a considerar porque gera pingues lucros, vénias e mordomias. Ninguém parece capaz de suster as acções dos burristeiros, estando-se a gerar um crescente pessimismo em relação ao futuro desta gasta e coçada sociedade. O pessimismo está presente na obra de portugueses do quilate de Oliveira Martins ou Antero de Quental, mas salvaguardando as devidas distâncias o nosso futuro é bem mais negro do que nos idos de oitocentos. Alguns amigos meus tentam fazer-me crer estar a exagerar, alinhavando dados e números relativos aos nossos indicadores de qualidade de esperança de vida, acesso à educação e à informação, sem esquecer a liberdade de expressão. Concordo. Apesar de concordar no referente a esses e outros dados, vejo-me na necessidade de trazer ao de cima as trapalhadas dos burristeiros nos diversos sectores da nossa estrutura social, cujos resultados se fazem sentir nas estatísticas internacionais a todos os níveis. Os fogos devoram-nos desde há anos, a corrupção de mentalidades e carteiras também, a iliteracia é enorme, o amiguismo também, o desleixo é patente, a incompetência também, a lentidão da justiça faz perder a cabeça a um santo, a negligência também. Podia fazer rebrilhar outras e muitas outras desgraças do nosso indesejável contentamento tão a gosto dos medíocres, invejosos e calaceiros. O exercício além de penoso, não iria dar melhor substância às realidades acima referidas, tão palpáveis e esclarecedoras que elas são. Os portugueses andam metidos a ouvir as falas do euro milhões, cada um pensando no modo de gastar o prémio, enganando-se a eles próprios, deixando subsistir a teia do desinteresse pela clara e vigorosa participação cívica a favor do risco de terem de aturar e sentir na pele os desmandos dos génios das bagatelas. A nossa tendência em busca da facilidade vai causar profundos amargos de boca aos nossos filhos e netos. Podem acreditar. Claro os cínicos respondem de rompante: não nos interessa, nessa altura já não estamos por cá! Muitos sabem sem saber o que é agir, o que é sofrer nas cadeias superlotadas, nos hospitais mordidos pelo tempo, nos lares de encaminhamento para a morgue, nos bairros infectos de promíscuidade onde as crianças são as primeiras vítimas, nas casas de espera a morte do nosso contentamento. Muitos, todos os dias recebem fartas doses de sofrimento, seja nas solitárias casas dos despovoados repletos de fantasmas, nas ruelas perigosas da periferia das cidades, nos quartos de aluguer de cinco minutos desesperados, nos casinos de ruínas humanas à espera de um milagre. Anos e anos de esperança convertidos em nada conduzem ao torpor, ao esquecimento, à indiferença e à tentação da burristice. Bem sei, os burristeiros porque não são difíceis comem do melhor. Até quando?