Ter, 16/05/2006 - 14:53
Os espaços são como as pessoas. Quando os revemos, depois da ausência, recriamos sempre a última impressão que se nos colou. Para logo a seguir nos perdermos em todos aqueles pormenores que vamos vendo, como se cada um deles tivesse acabado de nascer no momento em que o olhamos.
Tive essa sensação – em formato alargado – quando estive, duas noites seguidas, no Clube de Bragança, ainda e sempre esplanchadamente instalado na velha Praça da Sé. O móbil foi a Exposição de Fotografia do Luís Rodrigues – meu ex-aluno na escola Abade de Baçal e estudante do quinto ano de Arquitectura – que aí se dispôs a partilhar as suas imagens de Bragança vista por fora.
Dentro do Clube lembrei-me de que tinha estado ali há cerca de cinco anos, durante um período em que aquele espaço sofreu uma recauchutagem nas madeiras e nas ideias, abrindo-se à comunidade (tinha o Dr. Júlio de Carvalho então tomado conta da direcção) e recebendo actividades tão variadas e necessárias como apresentações de livros (“O Deputado” de Modesto Navarro, por exemplo) e ciclos de conferências (O Budismo e “Antígona entre duas mortes”, de que me lembro melhor).
Hoje, parece-me que o Clube de Bragança está formatado – como na banda desenhada das aventuras de Lulu, que eu lia em criança – numa espécie de “clube do Bolinha”. Onde menina não entra, ou quase; à excepção da simpática funcionária do bar e, evidentemente, das curiosas que por ali parem o tempo suficiente para se sentirem “penetras”, ao perceberem que o ecrã de plasma, estrategicamente colocado diante de uns apetecíveis sofás, está programado para a inevitável e previsível futebolice vista por cabo. Esta é, bem decerto, a perspectiva invejosamente feminina de quem acabou por se sentar, com pouca convicção, numa estóica cadeira junto da mesa mais próxima das duas primeiras séries de fotografias do Luís Rodrigues. Ora bem!
Mas era impossível ficar sentada (já perceberam que a cadeira é apenas um pretexto para denunciar a concentração dos sofás – como se só merecesse o conforto quem fica plasmado no plasma…), quando a toda a volta da sala do Clube havia tanto para olhar, ver e reparar.
E fiquei muito surpreendida com este trabalho do Luís Rodrigues. Não porque duvidasse do seu empenho, da sua lucidez ou da sua criatividade. Mas, sobretudo, porque o Luís concentra, aos vinte e três anos, todas essas capacidades e mais uma: a coragem desassombrada de revelar uma obra feita com paciência, curiosidade e uma visão poética do olhar sobre os espaços.
Ouvi alguém referir-se à exposição como uma colecção de imagens de locais, onde a intencionalidade do autor está por achar. Mas um dos aspectos que me parecem atraentes nessas treze séries de fotografias é, justamente – e porque se trata da sua primeira exposição – o equilíbrio entre o que as imagens sugerem e aquilo que o Luís não chega a dizer. O que faz com que sejam os outros – aqueles que olham – a ver de forma múltipla. E a recriar as perspectivas que o autor propõe, pelas relações com que ele aproxima ou repele as várias Braganças que vê, dos outros locais para os quais olhou.
Veja-se a série dos “Contentores”, com os silos da EPAC, em Bragança, ao lado dos blocos, em Chelas, onde se armazena massa humana. Veja-se, nas duas imagens dos “Recortes”, a simetria inesperada que surge entre o perfil perfeito de um telhado sobreposto de Granada, e os beirais escalamouchados de uma casa em Espinhosela. Veja-se os “Interiores” no espaço exterior de uma travessa da vila, em Bragança, e numa rua de Mértola, para se reparar que lá, como cá, é da relação entre a altura e a largura que nasce o efeito de espaço aberto ou fechado. Veja-se, nas fotografias dos “Resíduos”, aquilo que ficou por haver: os troços escalavrados da linha-férrea, em Bragança; o lixo adivinhado nos depósitos; e um rasto de fumo no céu por cima de Lisboa. Veja-se, na série “Longe…Lounge”, o jogo de espaços que enquadram a metáfora do lazer em Tróia, Bragança ou Sagres, como num terraço com vista sobre si mesmo. Veja-se, nas “Travessias”, a forma como as imagens que passam em Lisboa, em Parada e em Picote produzem efeitos de vertigem, de náusea e de silêncio. Veja-se a “Génese” nos castelos de Bragança, Evoramonte e S. Jorge, como sinal de uma origem, na passagem da sombra para a luz…
Alguém disse que o mundo se torna pequeno quando queremos mostrar algo: ou porque nos concentramos no objecto que fazemos descobrir e ele nos invade; ou porque o nosso espaço se alarga, na perspectiva da procura em que nos projectamos. De uma forma ou de outra, o mundo que o Luís Rodrigues mostra é aquele que o seu olhar foi construindo ao longo de seis anos, vendo Bragança por fora. E tornando-a presente, na sua ausência, pelos espaços com que a foi confrontando.
Os outros olhares são nossos.
Nota extra: Voltei uma terceira vez ao Clube de Bragança e vinguei-me: instalei-me num dos tais cobiçados sofás e fiquei plasmada (no plasma, o histórico Futre fazia que falava, mas já se sabe que nada é perfeito…).
O Clube de Bragança é o maior!