Balanços

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Ter, 16/01/2007 - 11:30


Todos os anos, nos primeiros dias do mês de Janeiro desafortunados adolescentes sudavam ferozmente até altas horas da noite implicados na tarefa de contarem botões, colchetes, molas, alfinetes, cuecas, cueiros, panos higiénicos, soutiens e seios de espuma, argolas, anilhas, porcas, parafusos, pregos, cavilhas, serras, serrinhas, serrotes e artefactos correlativos existentes nos comércios, lojas, locandas ou baiucas onde se vendia de tudo a todos.

Outros mediam chapas, tubos, tábuas, popelinas, cotins, estambres, fiocos, cetins, veludos, riscados e tutti-quanti em matéria de tecidos, pois o inventário devia ser rigoroso, mais que não fosse para os comerciantes-exploradores dos rapazes, dos balanços realizados ganharem pesadelos por causa das mercadorias a pagar e dos caloteiros incobráveis. Os jovens na sua maioria exibiam alva pele, sinal de juventude, os mais morenos provinham das aldeias ou do Albergue que abrigava os mais desamparados e desprovidos de Anjo guardião a nível familiar. Uns e outros depressa aprendiam os truques da contagem saltando casas e metros na ânsia de acabarem tão mortificantes tarefas, mais a mais porque não obtinham um mísero ordenado antes de verterem lágrimas, suor e às vezes sangue na execução de tarefas e trabalhos ingentes a sustentarem os vícios de alguns patrões e a solidificarem e aumentarem os lucros de outros. Muitas fortunas assim foram amassadas. De quando em vez o patrão dava-se ao cuidado de verificar a exactidão da quantidade estampada no traseiro da caixa, caso existisse diferença pecadora era absolutamente normal o emprego de palavras humilhantes dirigidas ao desgraçado inepto contador. Os balanços não eram instrumento de todos os comerciantes, dando azo a sorrisos e piadas de chacota por parte dos beneficiados quando o rapazio se encontrava na estação de Caminho de Ferro, ou por altura do intervalo almoçeiro a permitir umas jogatanas de caricas bem forradas, no Jardim do republicano de pêra e bigode. Outros balanços ocupavam a juvenil classe explorada, estes a toda a hora e momento, relativos a sopeiras resolutas no se deixarem apalpar, criadas calejadas a deixarem em fanicos as teses de Bataille, e mulheres maduras a solicitarem amostras de lãs, flanelas e escoceses ao domicílio com direito a elogios, chá e simpatia a transbordar. Um luxo luxuriante passe a rotunda redundância. As considerações de Alberoni ao pé de tanta beatitude secreta, não passam de fábulas destinadas a encantar os mais próximos da teoria do que da prática. Eram assim os balanços balançados de putos jubilosos sem direito a brincar e que brincavam conforme podiam, discretos e sabedores pois uma faladura a mais significava a morte do artista com direito a rugido despedimento capaz de gerar o opróbrio na comunidade em geral e sortida carga de porrada na inquietude do lar. Nesses balanços pontificavam os caixeiros mais velhos, mansos no ouvir as instruções dos donos dos comércios, inúmeros a pensarem no modo e a forma como no futuro se deviam estabelecer, e rijos no escarmentar os garnisés para ali atirados sabe Deus porquê, ou não tivessem eles sofrido o mesmo tratamento anos antes. O sistema, era aquele, os alcatruzes da nora rodavam ao sabor da nulidade reinante nos diversos sectores de uma cidade saturada de cinzentões, militarões, bacharéis, mangas-de-alpaca, mulheres dadas a flatos, maledicência, beatice e manhosos em conformidade, onde um homem como o Sr. Albininho de Gostei conseguia fazer o pleno em matéria de engodo influente e calmosa vivência. Neste quadro eram parcas as possibilidades de escapatória para estes rapazitos mutilados na sua formação cognitiva, por isso poucos o conseguiram de modo a regozijarem-se pela ousadia, mas manda a verdade dizer dos que ficaram muitos tiveram e têm êxito, reconhecimento e aplausos generalizados pelo seu desempenho enquanto – patrões e empresários. Ainda bem.

PS. Não considerem esta crónica cópia ou plágio de autor neo-realista. Apenas um relato fidedigno sem qualquer ressaibo de queixume ou lamentação. Era o que fazia falta!