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A Montaria…

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Em jeito de singela homenagem a um ser humano de rara generosidade e de quem era quase impossível não gostarmos, Valter Cadavez, conhecido no meio da caça por “Buffalo Bill”, amante dos montes e horizontes a perder de vista, da liberdade e da suprema pacificação que só os caçadores conseguem alcançar… À sua memória!

… esse excelente pretexto para vir ao campo, ao ambiente natural…! Os silêncios… o piar de pássaros, ainda discretos e algo misteriosos…, a envolvência, as cumplicidades, o companheirismo, a estratégia previamente montada, os matilheiros e os seus cães – elementos fundamentais das montarias –, as suas indumentárias distintas e profundos saberes, por exemplo, sobre quais os cães da matilha que precisam de chocalho; a sua temeridade, as cornetas, as vozes de comando e assobios… As sombras alongadas das estevas, das giestas e das carrasqueiras, as velhas caras conhecidas, mas só vistas nestes dias, gente que vem de muito longe…! Enfim… sabe-se lá o que mais… Ah… ainda o início das “ladras” distantes, as nuvens mudando constantemente de figuras… Belíssimos exemplares de podengo português passando, ainda na fase de se aliviarem por terem sido largados há pouco. Um perdigão a cantar insistentemente… E o ato de caça – montaria – vai decorrendo com grande animação, resultante das “ladras” e dos tiros, muitos…

As montarias configuram uma vertente da cinegética que atrai todos os estratos sociais e etários, apaixonante, com características de autêntica aventura (ou de desporto radical!). É uma forma de caça coletiva, com regras muito próprias, a fazer lembrar uma batalha contra um “inimigo” relativamente perigoso. A prática da caça maior era, em épocas remotas, o melhor treino para a guerra. Exige, por vezes, doses elevadas de sangue-frio, coragem, bravura e virilidade – só um monteiro sabe ao certo o que se sente quando, subitamente, Em jeito de singela homenagem a um ser humano de rara generosidade e de quem era quase impossível não gostarmos, Valter Cadavez, conhecido no meio da caça por “Buffalo Bill”, amante dos montes e horizontes a perder de vista, da liberdade e da suprema pacificação que só os caçadores conseguem alcançar… À sua memória! vê abanar a vegetação e lhe surge pela frente, em carga impressionante, um monstro negro, grunhindo ameaçadoramente... O matilheiro rematando, à faca, um navalheiro, ou enfrentando-o e abatendo-o, armado apenas com lança, revela os mesmos instintos, a mesma determinação dos nossos antepassados no Paleolítico ou na Idade Média. As mesmas são também as atitudes dos cães, sobretudo em “agarres”, iguais às do passado, desde que o homem os domesticou e passou a utilizar para auxílio na procura de alimento ou no combate às feras. «Quando o caçador é colocado no seu posto e fica só, consigo mesmo e com os seus pensamentos, no lugar certo, pode aperceber-se que a paisagem e o ato venatório sempre foram assim, olhando em redor e abstraindo-se do seu próprio ser – nada lhe diz que estamos no séc. XXI.» A montaria encerra em si atavismos que não nos deixam indiferentes; no homem rural é, ao mesmo tempo, uma atividade lúdica e de defesa em relação aos prejuízos causados nas suas culturas; no homem urbano é a resposta ao apelo subconsciente de regresso às origens.

 Ao longe vislumbram-se pequenos pontos fluorescentes, são os coletes dos matilheiros, alinhados e progredindo na encosta enorme, levantando javalis, aqui e ali, nos seus encames. O dia aprazível, sem frio, luminoso e soalhei- ro, agradável para se estar no monte e refletir sobre os “problemas do mundo”, mas principalmente sobre este fenómeno psico-não-sei-o-quê que é a caça. E, evocando o discurso do Diretor de Montaria, especialmente o momento solene em que todos se descobrem e guardam um minuto de silêncio em memória dos companheiros já desaparecidos, neste instante puramente contemplativo, surge um pequeno texto publicado na revista espanhola Trofeo, em janeiro de 1998, intitulado Big bang: «Durante séculos, sisudos e respeitáveis senhores indagaram sobre a localização do centro do universo, ninguém sabe bem para quê, com resultados diversos. Astrónomos, matemáticos, heresiarcas e poetas, místicos e mistificado- res, discutem se o universo é finito, ou as galáxias galopam em fuga. Se Copérnico, Galileo, Einstein, Hoscking, e inclusivamente os babilónios com os seus sete céus se tivessem dedicado às montarias, teriam encontrado o ponto-chave do universo na cosmogonia de um aceiro. Nesse cometa negro que desordena a geometria dos sobreiros, apoia-se o eixo do mundo, pendente de um dedo crispado.» Pois… a vida de um caçador também tem estas virtuosidades e privilégios e, talvez, a caça seja uma das formas mais extraordinárias de simplificar os mistérios que nos atormentam o dia-a-dia, exorcizar fantasmas, ou tão só para observar a beleza cristalina das manhãs transmontanas…! A poucos metros, junto ao caminho, no cimo de um olival, levanta uma perdiz, com estardalhaço, outra logo de seguida. É um casal – em fevereiro, só pode! Assim se perpetuam estes seres vivos…

Agostinho Beça