Ter, 23/01/2007 - 16:27
Há prazeres que perdemos com o passar dos anos. E perdemo-los porque se nos escapam pelas limitações das conveniências da vida dita adulta e responsável. E só quando os perdemos, os sentimos realmente como prazeres. Como se só do patamar ao qual os anos nos fizeram aceder fosse possível vislumbrar, em formato retroactivo, o gozo que tivemos sem dele tirarmos satisfação. A recordação das situações que vivemos na infância, e que então víamos como penas infernais, parecem-nos hoje delícias tanto mais apetecíveis quanto frequentemente inalcançáveis. Veja-se a reacção de uma criança quando confrontada com a circunstância de ter de se deitar depois do almoço: esperneia e protesta. E esse protesto, sentimo-lo nós como uma afronta ao tempo que já não nos pertence e que, por isso, nos surge como algo vagamente familiar, que olhamos com uma mistura de sentimentos contraditórios.
Fazer a sesta.
Para os adrenalínicos militantes, a coisa cheira a manobra subversiva de algum suspeito agente da preguiça. E é, por isso, necessariamente erradicável. Os dias são curtos, as horas não param e ir para a cama depois do almoço só mesmo nos sonhos mais loucos que não se atrevem sequer a ter.
Noutra latitude comportamental, vivem os indivíduos reflexivos do tipo generalista a atirar para o soarista. Garantem que não há melhor para o equilíbrio da mente do que o repouso do corpo “durante alguns minutos” no cadeirão estrategicamente ao lado da cama. E quando se levantam, à hora do lanche, não entendem como foram parar debaixo dos lençóis. Mas depois de reflectirem, acabam por concluir que o cansaço tem destas coisas e isso só prova, afinal, que essa sestinha foi bem merecida.
A uma distância considerável, surgem, então, os culpabilizados crónicos. Suspeitam de que o pós-almoço lhes provoca uma quebra de tensão. Mas como não têm a certeza de que mais vale quebrar do que torcer, esperam que ela passe. Mas como ela não parece passar, sentam-se à espera. E são apanhados, então, por uma onde irresistível que os amolece e os faz cabecear. À tensão, mais quebrada do que nunca, junta-se o pescoço, num esforço muscular quase brutal, que faz o culpabilizado crónico levantar-se anonado e envergonhado (terá alguém visto?).
Do que gosto particularmente no acto de sestar é a ideia de subversão que ele contém. É converter a noite, trazê-la para o dia. Ouvir o silêncio que nos envolve, sentindo que lá fora há um movimento que continua o seu percurso, como numa cidade que nunca dorme. E se esse efeito pode ser apreendido numa manhã em que nos levantamos tarde, ele ganha um sabor totalmente novo quando nos deitamos depois do almoço. Num recolhimento voluntário, onde as sensações do sono se afastam com nitidez das condicionantes nocturnas.
À tarde, o sono surge, forçando a barreira da luz e dos sons. À tarde, os sonhos chegam mais depressa, como se o subconsciente percebesse a limitação de tempo que se lhe impõe. À tarde, o efeito do descanso – mesmo nos incondicionais da dor de cabeça pós-sesta – é seguramente mais eficaz. Porque cria uma cumplicidade entre o desejo do repouso e a sua concretização. Sem más consciências.