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A Escolha de Deus

Qua, 03/01/2007 - 11:19


Oh, que queda foi a tua, lá em cima, do céu Ó astro matutino, filho da aurora! Oh, como foste derrubado por terra Tu que calcavas aos pés as nações! Isaías, XIV, 12-15

Recordo uma imagem que se encontra nos arquivos da minha infância, dos tempos em que eu era uma menina da catequese. À nossa vontade de conhecer as histórias de aventuras e heróis do Antigo Testamento, a senhora catequista respondia em ânsias de moralizar os nossos espíritos ainda demasiado soltos e pouco conscientes das diferenças entre o bem e o mal. E para que dúvidas não tivéssemos, tinha, então, a senhora o trabalho de nos esclarecer através de uns diapositivos, onde se podia ver, com olhos de medo, uma figura conhecida por demónio, de olhar lúbrico e garras alvoroçadas prestes a cravar-se numa esfera achatada nos pólos que, ao que dizem, é azul vista do espaço. Sucedia isto no Inverno do Marcelismo. E não se percebia, nos diapositivos, se o “espírito do mal” (que me parecia bem pouco espiritual) chegava a enterrar as garras onde não devia. E na dúvida se gerava o receio.
Para além do pavor causado pelo diabo em qualquer criança do meu tempo, devidamente educada na doutrina católica, surgiam sempre aquelas perguntas de meninos que acham que o rei vai nu: “Mas o diabo está no espaço a jogar ao berlinde com a terra?”, “Mas Marte, o planeta vermelho, não fará mais o género dele?”, “E se o diabo está no espaço, onde diabo põe os pés?”, “E será que os americanos, que já foram à lua, o conseguem ver de lá?”, “E se o diabo está no espaço, onde estará Deus? Já não há céu e inferno, afinal?”
Os anos passaram. E voltaram a passar. E eu fui percebendo que as coisas são o que nós pensamos delas e transformam-se quando descobrimos a verdade dos outros. O próprio diabo – pude entender – foi ganhando acepções cada vez mais terrenas e contornos suspeitamente geopolíticos. E, ansioso por se libertar do estigma religioso com que nasceu, aproximou-se finalmente do homem, como desejara desde os seus tempos de anjo luminoso. Assim afirma S. Paulo, na sua Epístola aos Efésios: “O diabo era um dos anjos propostos ao ar, tornou-se apóstata e rebelde à lei divina, quando veio a ter inveja do homem”, quando viu que Deus tinha submetido à Sua imagem todos os seres criados. A dor de se ver ultrapassado desencadeou a inveja que se reflectiu na revolta. E na forma insidiosamente demoníaca com que despachou o par do Éden para um vale menos verde mas húmido de lágrimas. A vingança do diabo começou assim e foi-se aperfeiçoando ao longo dos séculos e dos milénios.
Para além dos garrotes de ferro e fogo das Inquisições que almejavam a tarefa impossível de o cercear através da morte “purificadora” de uns quantos infelizes, o diabo revela-se no que é intrinsecamente humano, à luz dos princípios morais da religião. E é nessa questão que radica a dicotomia vulgarmente conhecida como “bem versus mal”. Que, ao longo dos tempos, foi sobejamente utilizada por razões de estratégia política e religiosa, para proveito de uns e descrédito de outros. Hitler e Estaline, por exemplo, ficaram para a História como dois anticristos – o que não terá deixado de criar um dilema provocado pela sua contemporaneidade. Porque a encarnação das forças do mal em duas personagens que viveram na mesma época poderia sugerir a necessidade de dividir o poder da malignidade e, consequentemente, enfraquecê-lo. O que, a julgar pelos actos perpetrados pelos dois ditadores, não terá sido o caso, já que se poderia considerar como exponenciais a força e a influência do diabo naquelas duas tristes figuras.
Já mais recentemente, pelos anos 80 do século XX, um presidente americano com um passado cheio de fitas, desenhava na geografia do globo terrestre um espaço designado por “império do mal”, também conhecido por URSS. Curiosamente, pela mesma altura, Khomeini, o mais convicto ayatollah do Irão, invectivava os EUA de “grande Satanás”, considerando que todo o regime político que acreditasse que é o povo quem comanda o povo estaria a afastar-se de Deus. Ou seja, num regime muçulmano, não laico, é Deus quem mais ordena. Consequentemente, numa democracia, se não há Deus (porque é o povo quem detém o poder), não pode haver lugar para o diabo. Certo? Porque o conceito de “mal” só existe à luz do bem, enquanto princípio moral de qualquer religião.
Donde se depreende que o inferno é, afinal, um espaço móvel que se desloca em função de convicções mais ou menos fundamentadas em desejos e interesses estratégicos. E donde se entende, também, que a actual administração americana corre o risco real de ser vista como essencialmente teocrática – e, portanto, diabolizável – já que, mais do que o poder do povo, ordena a iluminação divina que relampeja nos espíritos de alguns estadistas (veja-se a forma como Saddam Hussein foi eficientemente despachado para as mãos dos seus executores). “Deus abençoe a América” e “Deus está connosco”. Que virá depois? “Quem nos seguir, viverá”?
Nestes tempos de guerra sustentada contra o “mal”, o fundamentalismo – venha ele do Próximo Oriente ou do Ocidente Próximo – predispõe sempre para a desconfiança, a intolerância e o ódio pela diferença. Quando se assume que “isto é bom e aquilo é mau”, joga-se num tabuleiro onde os diferentes peões obedecem a regras semelhantes e onde o desfecho é sempre perigosamente previsível.
Quando todos se arrogam o exclusivo do domínio do bem, Deus vacila e hesita. E cabe, então, ao diabo escolher.