Qua, 03/01/2007 - 10:35
Lá forrou milhões de cruzeiros que se esvaíram no decurso de uma desvalorização. Asneira de quem sonhava regressar à fabulosa cidade. Enquanto durou a longa peregrinação, a minha avó sozinha teve de se arranjar, tentando manter ordem no lar. Nesse mesmo ano, Humberto Delgado passou apressadamente por Bragança, rodeado de poucos apoiantes – entre eles os Senhores Artur Mirandela e Miranda Braga e escoltado por bufos, legionários, policia e sarrafeiros da PIDE. Não resisti à tentação e fui espreitar o General Sem Medo, o progenitor ao ver-me franziu o sobrolho, entendi o olhar e raspei-me, o termo é mesmo esse. Por essa altura a vida corria-me mal, francamente mal. Uma porca miséria como haveria de ouvir muitos anos mais tarde a uma italiana dada à psicanálise, de curvas acentuadas, bojuda de peito e minha amiga. O regresso do meu avô à Ítaca lagarelhense processou-se em completo júbilo, numa mão anel e relógio de ouro, óculos do mesmo metal, muitos fatos, cigarros já enrolados estilo Hig-Life, e a experiência de quem tinha vivido muito mundo. A velha casa recebeu obras incluindo casa de banho – banheiro à brasileira, a primeira a fazer na aldeia dos prazeres, das gargalhadas e da aprendizagem dos jogos de cartas. Um elemento primordial nos benefícios domésticos foi a aquisição de um enorme rádio puxado a bateria, encerrada num caixote de madeira. O progresso morava ali, concitando interesse e visitas de todos quantos queriam saber novas do velho Portugal, sem excluir os discursos de Salazar, naquela sua voz de cana rachada. Os serões prolongavam-se pelo menos até o Pedro Moutinho nos dar conta das últimas notícias e nos mandar para a cama ao som do hino nacional. A última noite daquele ano prometia – o meu padrinho entre alegrias esbugalhava os olhos dos circunstantes ao descrever pormenores das vivências no Rio, o meu avô com uma ponta de malícia nos olhos evocava a Cármen Miranda, e não se esquecia do famoso Chianca de Garcia um português dotado, cineasta e ousado programador no casino da Urca, assim o verifiquei quando por lá andei nos idos de oitenta. As comidas estavam a cargo das mulheres, nessa noite ninguém arredava pé, íamos ouvir as badaladas da meia-noite de forma rigorosa, transmitidas pela Emissora Nacional, acompanhadas pelos comentários de Maria Leonor. De quando em vez, tanto o meu avô, como o meu padrinho levantavam-se, rodavam os botões, procuravam outras estações, logo apareciam algaraviadas de meter medo, para depois regressarem à estação oficial. Apareciam e desapareciam nozes, figos, pão, filhoses, o pequeno garrafão foi substituído por copos sempre a serem enchidos de vinho, um ou outro cravava-se na aguardente. Não existiam receios privados, nem sombras pessoais, reinava a alegria, mesmo eu esquecia as agruras de um quotidiano vazio de contentamento. A locutora, assim se dizia, assinalava o girar da roda do tempo informando da aproximação da hora H, veio, ouvimos as badaladas, trocámos risos e abraços. No dia a seguir tínhamos a missa manhã alta e refeição reforçada, mas naquela noite a folia continuou, a sueca assim o exigia. Enquanto calculava as jogadas o terno avô deleitava-se a rememorar o fim de ano na cidade maravilhosa e os costumes das múltiplas etnias ali residentes. Os russos depois de beberem champanhe atiravam com a taça de cristal para detrás das costas, dizia. Atrevi-me e perguntei: a que sabia a champanhe? O excelente avô sorriu, prometeu-me ensinar-me a apreciar tão preciosa bebida. A bancarrota do cruzeiro inibiu-o de cumprir a promessa, mas anos mais tarde no restaurante Machado bebeu comigo, prazenteiramente, uma garrafa de champanhe e por diversas vezes o espumante Fita Azul, da Borges. Bebia delicadamente e recordava sem azedume, muito menos com queixumes. Um senhor, cujo apelido lhe valeu um despedimento.