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O Fim da Batota na Sra. Da Serra

Ter, 26/09/2006 - 16:36


Considerado um dos mais proeminentes locais de culto desta região, a Nossa Senhora da Serra, cujas práticas de devoção decorrem todos os anos, de 1 a 8 de Setembro, perdeu, pelo segundo ano consecutivo, por força do cumprimento da lei que proíbe os jogos de Azar ou Fortuna, em locais não autorizados, o terceiro dos seus grandes motivos de atracção: a batota.

Por estranho que pareça, eu, que mantenho com as cartas de jogo uma relação de completo afastamento – pode dizer-se que mal as conheço –, e que sou assumidamente contra a legitimação da “imoralidade” baseada no argumento da tradição, tenho uma posição muito crítica quanto à proibição da batota, neste lugar tão sui generis. Não só porque não há da parte das nossas autoridades a recomendável abertura de espírito para tentarem perceber o contexto em que este jogo ocorre, bem como as motivações de quem nele participa; como, de uma forma provocatória, se constata que as leis deste país não são aplicadas transversalmente, ou seja, decreta-se a proibição dum dado fenómeno ou prática em Bragança, mas a mesma posição não é tomada, para casos similares, por exemplo, em Braga, no Porto, em Lisboa ou em Faro.
Da minha experiência, tida na qualidade de “devoto” da Nossa Senhora da Serra, há largos anos, o jogo da batota, ao contrário dos realizados nas salas de bingo e nos casinos, nem cria dependência, nem, tão – pouco, dá origem ao desbaratamento de fortunas. Aqui, e na circunstância concreta em que ele se situa, tudo se processa dentro do mais “maculado” espírito de convívio e brincadeira. Regra geral, as apostas - assumidas entre grupos de amigos, depois da degustação da afamada vitela assada -, são concretizadas através da já tradicional figura da “baquinha”. Pelo que ganhar ou perder não causa qualquer tipo de euforia ou frustração, tão insignificantes são as verbas em causa.
Definitivamente, por estas bandas, o bom senso, como faculdade de ajuizar com equilíbrio, com ponderação as tensões e as circunstâncias dos “movimentos” em sociedade, não parece presidir às relações de convivência entre autoridade e cidadãos. Por cá, o profissionalismo dos afiançadores da lei, que se regem por critérios de actuação de malha estreita, tem posto em causa uma espécie de, se assim lhe quisermos chamar, sub cultura, se por ela entendermos todo o conjunto de manifestações sociais que perpetuam a nossa memória.
Aceite-se ou não, a Batota na Sra. Da Serra, longe de ser nociva, a par da Fé e da Posta, é responsável por um considerável movimento de convergência humana rumo ao Santuário. Esta realidade, à qual aderem e estão ligadas pessoas das mais diversas proveniências sociais, é tão significativa – mais do que não seja em termos de registo sociológico –, que, nestes dois últimos anos, marcados pela ausência do terceiro elemento (em importância) da trilogia, o número de romeiros que ali se deslocou decaiu consideravelmente, comparado com os longos anos em que se cumpriu a tradição desta variante do “desporto sentado” – sem o qual, numa opinião generalizada, e por mim subscrita, não é Serra.
Para se perceber que na metodologia de actuação dos nossos representantes da lei não há lugar à “vista grossa”, nem à flexibilidade, é termos presente a “machadada” infligida ao Grupo Desportivo de Bragança, quando, há 4anos, acabaram com uma das suas mais expressivas fontes de receita: o jogo do Loto. E, tanto quanto julgo saber, em mais nenhuma vila ou cidade deste país esta medida foi tomada. Provavelmente, em tais lugares se entende que estes pequenos clubes são incondicionais “embaixadores” das zonas a que pertencem; e que também este jogo nada tem de vicioso, nem de vinculativo, porque jogado num contexto muito particular, num salutar convívio próprio de agradáveis ambientes de noites de Verão, ao ar livre.
Com alguma legitimidade, nós, bragançanos, interrogamo-nos por que razão, por exemplo, em Barrancos as ordens do tribunal não são acatadas pelos partidários da selvática tradição dos Touros de Morte, proibida pela nossa Constituição; e por que razão o tão deprimente quanto sórdido fenómeno da prostituição só deve ser erradicado desta cidade.
Em relação a este tema, que suscita um inevitável paralelismo com o da Batota – nem que mais não seja porque ambos se inscrevem na classe do fruto proibido a dissuadir-, alguém perguntava, ironicamente, numa conversa entre amigos, se as intituladas Mães de Bragança, uma vez escorraçadas as “cheirosinhas”, teriam resolvido os seus problemas conjugais. No mesmo tom, outro respondia: “não me parece, porque se consta que aos fins – de – semana à noite, em zonas suspeitas de Alcanices e Zamora, se vêem muitos carros com matrícula portuguesa!”
É, pois, convicção minha que, tanto o jogo da Batota como o do Loto tiveram o desfecho que tiveram, por duas razões: primeiro, porque o pacato cidadão desta terra, adepto de um e de outro, tem algum pudor em dar a cara, de vincar a sua posição, com o receio de ser julgado pela sociedade; porque, queiramos ou não, qualquer jogo rotulado de “azar”, ainda que praticado num espírito de puro divertimento, acarreta a indelével marca do estigma; segundo, porque alguns senhores, que desde sempre os vi lutar por convicções, se remeteram comodamente ao silêncio hipócrita, numa posição de conveniência, de pragmatismo político.
A isto, sim, eu chamo batota, no sentido mais promíscuo do termo, porque quando não agimos de acordo com o que pensamos, traímos a nossa própria consciência.