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O Michelim II

Ter, 05/09/2006 - 15:32


Para a nossa professora ele foi sempre o Amílcar, qual general Barca e, Herculano em manhãs de erros no ditado e tardes de enganos nas contas, com as reguadas da ordem nas costas das mãos, por que a Dona Aninhas Castro não gostava de desvalorizar os castigos batendo a madeira nas palmas das mãos.

Ele era mais velho do que a generalidade dos alunos, possuía físico avantajado, voz a mudar e uma grande propensão para desencadear perigosa hilariedade no seio da turma. Aos mais pequenos, a nós, o António Afonso e o Francisco Cepeda aí estão para o confirmar concedia protecção em termos gerais, defendendo-nos das picardias em uso e abuso nos intervalos, de modo a enfurecer outros matulões. Vindo do fundo da cidade orgulhava-se de pertencer à Escola da Estação, participando avidamente nos acontecimentos a colocar na devida ordem os rapazes da Escola da Estacada, os quais diziam comer pão com marmelada, enquanto os da estação teriam à sua mercê pão com merda de cão. O José Luís Pinheiro, mais adiantado, mas também companheiro do Amílcar, disso se lembra certamente. A nossa Escola era frequentada por ciganos, ali eles não passavam de alunos iguais a nós, ninguém empregava a agora a tão usada palavra – integração – e as mães deles quando apareciam, defendiam junto da Dona Aninhas o emprego de mais reguadas de modo a os rebentos aprenderem devidamente as matérias tal como os restantes. Nos conflitos ou escaramuças o “general” Amílcar nunca procedeu a separações por via de uns serem ciganos ou não ciganos, sim por razões de eficácia, desempenho, robustez e capacidade de luta. Mais tarde, em dia de muita neve, namorava eu placidamente na Estrada de Turismo, quando vejo o Amílcar a enfrentar um grupo de estudantes do Colégio, a refrega saldou-se por um nariz a sangrar devido a um soco por ele desferido. Antes de se retirar, torceu os lábios num sorriso e desejou-me boa tarde namoradeira. Os anos passaram, o Amílcar passou definitivamente a ser o Michelim, transformou-se em protagonista de tomo no mundilho do futebol local, sendo largamente aplaudido pela sua valentia e engenhosidade, recebendo em contrapartida castigos devido a uma estridente e fogosa ingenuidade muito bem aproveitada por adversários de dentro e fora do campo. Realista no desarme, pouco lhe importava o maior espevitanço do seu antagonista, empregava-se a fundo numa mistura regular de superioridade física e amor à camisola, originando não poucas vezes reclamações e castigos devido a hiperlimpeza pela posse da bola. Longe da cidade, chegavam-me ecos do seu desempenho em defesa e amor ao clube, sempre disposto a trabalhar em prol do Desportivo. Devido às andanças da vida, nos últimos quarenta anos poucas vezes conversei com o “Michelim”. Nos ocasionais encontros vinha à baila a velha convivência escolar, lembrávamos a senhora sua Mãe, autêntica Mãe-coragem do teatro de quadradinhos de Brechet, não esquecíamos a “guerra do botões” à Pagnol, num descongelar do tempo percorrido, que não perdido. Na derradeiro encontro revelou-me as dolências que o apoquentavam, tomou uma bebida fosforescente sem álcool, deixou caír as mãos em sinal de impotência, enquanto os olhos já tinham perdido o brilho de uma irreverência capaz de chegar ao desregulamento, mas sincera nas intenções e um pouco mitológica de acordo com o seu mundo e modo de viver. Morreu o Amílcar, soube-o pelos jornais. Esta evocação é uma modesta forma de o recordar fora do circunstancialismo obituário em voga, para além das costumeiras frases de efeito, porque quando as pessoas morrem, logo alcançam a momentânea benignidade de boas pessoas. E o Amílcar era uma delas. Assim o penso.