Ter, 08/08/2006 - 15:37
Começavam no princípio de Junho, acabavam no primeiro dia de Outubro, só a lembrança do seu fim provocava-me um enjoo no estômago, um arrepio na espinha, um torvelinho no olhar, dissipados pela largura do tempo até ao negregado dia do regresso à cidade. Chegado ao Barracão, agarrado à maleta, só me faltava romper ao saracote a modos de cão festeiro, mesmo faltando os tocadores de sacabuxas, gaitas de foles e pífaros dos gaiteiros contratados para animarem o dia de São Pedro. Enquanto percorria o caminho lançava os olhos sobre as árvores de fruto, pois mais dia, menos dia, delas iria colher primícias ou as mesmas não pertencessem a um tio, tia ou primo da vasta parentela. Férias, férias na aldeia, a bem dizer ninguém gozava, a não ser eu. Os poucos que andavam a estudar tinham as férias totalmente preenchidas pelos trabalhos agrícolas, sendo exemplo marcante o Tó, neto da Sra. Amélia, ainda longe de ser o brilhante oficial pára-quedista que foi. Partilhavam as férias comigo quatro rapazes sem teres e haveres, por isso disponíveis a todo o tempo de modo a não permitirmos sossego aos passarinhos cantores, aos animais domésticos e sempre de olho nas minúsculas melancias a crescerem na cortinha, para a todo o transe as capar, ante a reprovação da minha avó. Os outros meninos passavam por nós, de olhar invejoso pela nossa prosperidade, descalços com os pés enfiados no borralho dos caminhos para os pés irem mais frescos, levando na cabeça um chapéu de palha esburacado, apertando com um cordel à laia de cinto as calças em terceira mão, levando por cima da camisa surrada, uma qualquer alfaia agrícola. Porque os rapazelhos são travessos e dados a maldades, dávamos de barato o receio, e tecíamos preliminares de investiduras de mangação aos pequenos trabalhadores, forçosamente obrigados a esquecerem brincadeiras, jogos e alegrias. O resultado das mofas nem sempre nos era favorável, pois eles possuíam força, destreza e cabos de enxadas ou varas de tangerem as vacas. O Estio dava poucas possibilidades de descanso à maioria das pessoas devido à importância das tarefas a executar, pois as colheitas representavam a solvência em muitos casos e noutros a sobrevivência. O calor produzia visíveis efeitos na andadura de todos, até as velhas se desapossavam das meias, as suas pernas bambas mostravam rebanhos de cabras vermelho Benfica, coisa que provocava risadas e comentários guardados ciosamente pelo bando onde eu me integrava. Os trabalhos de gastar aquele glorioso tempo começavam cedo, as correrias não cessavam até à hora do almoço. Não havia engarrafamentos de trânsito, mas topávamos meninos de calções rachados a fim de terem os fluxos e refluxos intestinais facilitados, sempre a exibirem uns farolins de ranho a subir a e descer conforme o ritmo da respiração, enquanto metiam na boca um qualquer paliativo enganador da vontade de comer. Pela tarde tomávamos banho nas águas sujas ou encardidas dos poços, sem medo de moléstias de nenhuma espécie. A jornada só acabava ao ouvirmos o toque de Trindades. Atrás de férias grandes, outras vieram, continuei a buscar em Lagarelhos a felicidade sem excepção, maior, lia tudo quanto me vinha à mão, sem esquecer o “Comércio do Porto” no estabelecimento dirigido subtilmente pela Sra. Aurora, até um dia. A partir daí acabaram as longas e formidáveis férias. Os leitores conhecem a máxima daquele famoso escritor: “não voltes ao lugar onde foste feliz”. Eu, de quando em vez volto. Nem que seja por um remordimento da memória dos tais tempos de comprazimento comigo próprio. Cada parede, cada casa, cada caminho, cada árvore se ainda existe, cada rosto, cada alcunha, cada poça, o esvoaçar das andorinhas, até o badalar do sino me transmitem pontos de referência de recorte do passado, que não passadista.