Qua, 26/04/2006 - 11:01
E nem a paixão lhes retira o discernimento. Talvez porque, para os nordestinos, a palavra “paixão” não traduza tanto o sentimento de amor intenso, mas, sobretudo, a patética imagem do martírio e morte. Donde se depreende que o sofrimento que os transmontanos foram consumindo em doses regularmente reforçadas lhes foi apurando a capacidade de discorrer com apuro. O que, infelizmente, não parece ser apurável nos momentos decisivos, aqueles que ocorrem com uma periodicidade regular e cujos resultados acabam invariavelmente por confirmar que do todo muito pouco varia.
Mas não se choramingue por ora – que os dias do calendário ainda são aleluiantes – e hossanemos o espírito brando mas listo do bom brigantino. É que, na semana pré-pascal, ficou a saber-se que a Rádio Brigantia lançara um desafio aos seus ouvintes, propondo-lhes o exercício de associarem as figuras público-políticas da região às personagens intervenientes da Paixão de Cristo, segundo os Evangelhos Sinópticos, de Lucas, Marcos e Mateus. Que apresentam versões aproximadas. E muito próxima da redenção se mostrou a visão do público participante (comentada no programa semanal “Sem Papas na Língua”) que lucidamente revelou o povo do Nordeste como o Cristo. Preso, flagelado e crucificado; o que constituía, ao tempo, a morte mais infame, exclusivamente reservada aos escravos, aos criminosos e a todos os que se revoltassem contra o poder da imperialíssima Roma. O que traduz uma analogia, no mínimo, pedagógica, se olharmos a perspectiva com que o poder central tem vindo a desencarar o Nordeste Transmontano. Pelos beijos dos Judas Iscariotes. Em quem o público brigantino viu os afoitamente ambiciosos filhos da terra, conhecidos pelos nomes de Duarte Lima e Armando Vara. Que, convenientemente, entregaram o Cristo aos príncipes dos sacerdotes. Anás, em cuja solene e profícua liderança os brigantinos viram o inesgotável Telmo Moreno. E Caifás, figura repartida por uma dupla de actores bem populares, cujos inconfundíveis desempenhos estão ao nível do espírito guicho do sumo-sacerdote do templo de Jerusalém: Adão Silva e Mota Andrade.
Curiosamente, no livro “Jerusalém no tempo de Jesus”, de Joaquim Jeremias, é mostrado que Anás e Caifás eram os principais gestores das receitas do Templo, organizando o comércio dos animais destinados aos sacrifícios. Por isso, torna-se fácil perceber que o episódio em que Cristo expulsa os vendilhões do Templo (entenda-se: os mercadores de animais e os cambistas) punha em causa o poder e os interesses de Anás e de Caifás, prejudicando as suas conveniências económicas. E, também, naturalmente, as dos romanos que tributavam as dádivas e ofertas feitas pelos judeus, durante as mais importantes festas. Donde se alcança que Cristo era uma personagem incómoda para os poderosos, que estavam, sobretudo, interessados na manutenção da ordem estabelecida e no seu próprio favorecimento pessoal. Por isso, os sumos-sacerdotes Anás e Caifás entregaram Cristo a Pilatos, apresentando-o como um rebelde que instigava o povo a não pagar os impostos ao ocupante romano e que se proclamava rei dos judeus. Por isso, foi Cristo crucificado e não apedrejado – como haveria de acontecer se tivesse sido condenado pela lei judaica.
Como Pilatos, governante todo-poderoso e assepticamente desinteressado do acusado, viram os cidadãos brigantinos os expatriados e pouco saudosos António Guterres e Durão Barroso.
E Barrabás, essa obscura figura, tida como um revolucionário zelota, que foi libertado em lugar do Cristo? Pois, inesperadamente, este papel foi atribuído não a um indivíduo, mas a um organismo: a Comissão de Coordenação de Desenvolvimento da Região Norte. O que confirma a moldura pouco realista do quadro em que se supõe que o governador romano tenha deixado impune um criminoso que fora preso por matar soldados romanos, numa revolta organizada. A ausência de consistência histórica é coincidente com a irrelevância que as comissões de coordenação têm vindo a ganhar, com a perda sistemática de competências. E, tal como Barrabás, servem apenas de pretexto para que se cumpram os desígnios calculistas das altas instâncias…
E o “bom ladrão” – crucificado à direita de Cristo –, símbolo do arrependimento na hora certa? Pois nessa figura de improvável sentido de oportunidade viu o público brigantino os ex-deputados (etc, etc) Machado Rodrigues e Júlio Meirinhos. Um, porque ganhou lucidez e cortou o fio que o prendia a uma bancada de previsíveis marionetas. O outro, porque perdeu a paciência e desresignou-se perante as linhas onde se cruzavam jogadas muito pouco desportivas.
Ainda nos Evangelhos de Marcos e de Lucas, é referido um homem, vindo de Cirene, chamado Simão, a quem os soldados romanos obrigam a levar a cruz de Cristo. E nesse homem, saído da multidão e conhecido como o Cireneu, os brigantinos viram o ex-presidente da Câmara Municipal de Vinhais, José Carlos Taveira, e o actual da de Mogadouro, Moraes Machado. Porque ambos arriscam o desassombro – para além da sombra política que se projecta sobre eles – e acreditam na boa fé de que é feito o esforço que o homem honesto sempre carrega.
Mas, como assinalou um dos participantes do programa “Sem Papas na Língua”, mesmo com alguma ajuda sempre o Cristo chegará ao monte Gólgota para aí ficar pendurado do alto da sua cruz. E também o Nordeste, ao que parece…
E isto lembra-me uma história que ouvi, em criança, na aldeia da minha mãe, a propósito de um pobre de espírito que em cada Páscoa se arregalava de espanto ao ouvir as peripécias da Paixão de Cristo. Porque lhe parecia incompreensível que a mesma história se repetisse ano após ano: “Arre, que o home é bem brutinho. Fizeram-lho uma, duas, três vezes e ainda lá voltou…”.