Ter, 31/01/2006 - 16:14
Circunstância que demonstrava que o uso da razão não estava dependente do estatuto que o regulamentava.
Os tempos foram passando, muitos cabelos branqueando e os animais perceberam que não era por falarem que ficavam mais espertos. Por isso, remeteram-se ao linguajar específico da sua espécie e foram fazendo de conta. No que conseguiram o pouco desprezível feito de levarem os humanos a verem-se como seres infinitamente superiores.
Bragança, mês de Janeiro. Estamos no ano de 2006 depois de Jesus Cristo. Toda a região foi ocupada por uma onda de frio altissimamente inesperada nesta altura do ano. Toda? Não!! Um aglomerado populacional resiste ainda e sempre ao invasor. E a vida não há-de ser fácil nesse campo entrincheirado conhecido por Praça da Sé. Onde os passeantes (e eles passeiam-se a ver o quê?) se riem de graça e dos graus pouco abonados, exibindo bochechas coradas pela temperatura e pelo fumo dos chouriços.
(“Ó pá, estes fulanos existem mesmo, ou isto é alguma falha técnica? Não usam sobretudo, não têm cachecol e até dizem que isto é bom para a cura. Safa, que mais vale morrer do mal!”)
Este filme, com um ou outro ligeiro pormenor ficcional, passou, há cerca de duas semanas, no noticiário das estações televisivas generalistas. Ao natural. As mesmas que, no calor de Agosto, informaram os distraídos de que “o país está a arder”, lançaram agora o formato fresquinho da época invernal. De que Bragança, com sua neve, suas estradas cortadas, seus limpa-neve por achar e seu “turismo de Inverno” por existir, se tornou a grande estrela da estação. E nove milhões e oitocentos e trinta mil habitantes olham para Bragança, pelo ecrã. E pasmam de ver, como num documentário da National Geographic, a forma como os nativos que moram Atrás dos Montes adaptaram a sua estrutura antropomórfica às condições geotérmicas dos morros onde lhes coube nascer.
- Ó pá, eles não são como a gente. Aquilo é da raça das focas. Se não, não se aguentavam com todos aqueles graus a menos.
- Ó pá, tá-se mesmo a ver que aquele briol todo lhes deve ter encolhido os neurónios; se não os moços já se tinham pirado.
- Ó pá, não digas isso. Eles não falam como a gente (lembras-te daquele ministro, o da fundação, aquele que agora está encaixado?), dizem que sim com os erres todos, mas não são maus rapazes – e as raparigas, se forem como as brasileiras, nem tão mal…
- Ó pá, então é assim: vocês não estão a perceber nada. Então ainda não atingiram que ali para cima já não mora ninguém? A raça extinguiu-se; aquilo é tudo hologramas. Ou pensam o quê? Acham que alguém gosta de fazer número na paisagem?
- Ó pá, eu por acaso até desconfiava.
- Iá, pá; e ninguém divulga isso que é práquilo não sair do mapa.
- Claro, pá, que depois a gente recebia menos subsídios da União Europeia…
- Iá. Tá-se bem, pá. Aqui em baixo.
O rato do campo que, de visita a Lisboa, estivera até então encostado – com um sorriso beatífico – a um aparelho de ar condicionado, arrebitou as orelhas. Espetou o narizito e assim ficou alguns momentos. Depois, subitamente, como se fulminado por um raio esclarecedor, o rato do campo lembrou-se de que era guitcho e desatou a correr desesperadamente por este país acima.
Só parou a cinquenta quilómetros de Quintanilha.
P.S. E nós, por cá, todos na mesma … por enquanto. É que tanto quanto me apercebi pelas declarações entusiasmadas que uns afincados apoiantes de Cavaco Silva fizeram à imprensa regional: agora é que vai ser!!!
O IP4 vai deixar de estar no mesmo sítio – certamente por efeitos especiais de corrida, como no animado anúncio televisivo onde o veloz Fernando Alonso põe a estrada em movimento. As maternidades não só não fecharão, como se multiplicarão à média de uma por cabeça de nascituro. Os serviços público, no distrito, arramar-se-ão, ao ponto de necessitarem de recrutar funcionários do litoral que aqui – e só aqui – conseguirão resolver os seus problemas de desemprego. Sendo que, finalmente, se travará, para todo o sempre, o grave problema da desertificação da região.
Ah! Se os habitantes do distrito de Bragança tivessem sabido tudo isto em 1996, quão bem estaria, agora, o Nordeste Transmontano!...