Ter, 17/01/2006 - 16:29
Estava eu a investigar alimentos e práticas culinárias numa aldeia da serra de Penela e o instrumento que o Dr. Mário Soares não usa, retiniu. Era o António a solicitar a minha presença na Biblioteca Municipal de Sintra, a fim de participar na apresentação de “cousas” boas nordestinas. Lá fui. O Virgílio já tinha estado, outros também, abracei o Rogério Rodrigues, cumprimentei à direita e à esquerda e, num tom de alacridade logo decretei ser o butelo um enchido de recurso, simples em matéria arte culinária, claro exemplo da argúcia do homem em nada desperdiçar dos animais que lhe proporcionavam energia e fortaleza, para fazer frente às inclemências e carestias do seu quotidiano. A conversa alargou-se, o prudente António deixou-me deslizar de produto em produto e, depois com o Arquitecto Carlos Guerra a entrar no “prélio” da fascinante história da alimentação continuei a prédica destinada, apesar de duvidar de o ter conseguido, a elogiar as capacidades dos transmontanos em matéria de lograrem uma dieta alimentar suportada no engenho, tal como a dos alentejanos. Os interessados sabem da fama e o proveito dos habitantes para além Tejo e das terras de Odiana, no desempenho de recrutarem ervas e essências determinantes para transformarem um acompanhamento num elemento principal na composição de uma refeição, dando muita ênfase aos condimentos. Já agora, anote-se a evidência, o excesso de cheiros descaracteriza e desvaloriza a individualidade dos alimentos. Os novos-ricos e bem falantes destas coisas é que se inebriam a conceder pendão e caldeirinha a ervas que não devem ultrapassar a sua função. Pois bem, os transmontanos tal como outros povos não perdem no confronto, sendo as cascas ou casulas expressão primeira disso mesmo. E, lá temos, o butelo aproveitador dos restos do porco em toda a sua expressão, promovido à categoria de alimento de base ou principal, as casulas na função de variar e alentar o alimento principal e os condimentos adicionados em pequenas quantidades a darem o “toque” ou gosto ao prato. Ora, neste pormenor os antigos sabiam a “cor” da fome, sopesavam o valor simbólico e majestático do trigo, as gradações da cor do trigo e a componente simbólica de poder estão estudadas, não podiam desdenhar nenhum acompanhamento sob pena de a sua triste condição de vida ainda se agudizar mais, até porque os condimentos não podem ser consumidos sozinhos. Foi a avareza de alimentos que obrigou os nossos antepassados a serem especialistas na arte nenhuma parte do porco se perder, promovendo a banha a “manteiga” que podia barrar um bocado de pão centeio, torrada é muito chic no âmbito desta crónica, tal como os alimentos vegetais: azedas, acelgas ou urtigas, só para referir alguns, recebiam amplo acolhimento dos pobres, humilhados e ofendidos. As freiras do Convento da Mofreita tinham ao seu dispor uma boa panóplia de produtos, daí poderem recrear os desejos sofridos e oprimidos em doçaria sensual e chamativa, mas o desgraçado de Dine ou de Lagarelhos satisfazia-se a mastigar um carolo de centeio a acompanhar um esparregado de urtigas. A caçoila, o alimento e o modo de o preparar fornecem-nos indicações sobre a evolução dos povos, as representações dos produtos considerados sãos ou interditos também, já a assimilação desses mesmos produtos sejam de origem animal ou vegetal não pode ser quantificada em quantidade dos que morreram a experimentarem, melhor dito: a matarem a “malvada”, morrendo. Muitos interditos nasceram por um sem número de razões, a começar pelo facto de animais domésticos se alimentarem da própria comida do homem, enquanto outros são proibidos porque os animais os ingerem. É o caso dos cogumelos. Experimentem oferecer cogumelos a um finlandês. As renas alimentam-se deles. Além disso determinados cogumelos apenas entram no “festim” de ocasiões espaciais, por serem alucinogéneos. A meu ver um dos segmentos essenciais da renovação dos comeres transmontanos passa pelos cogumelos, os quais propiciam poderes aos xamanes. Os meus admirados antropólogos: Claude Lévi-Strauss, Douglas, Leach, Richards ou o sempre lembrado Josué de Castro ensinam-me muito, mas o engenho das mulheres do nosso terrunho ao transformarem um ovo numa deliciosa refeição, ao preferirem umas boas brasas a altas labaredas de modo a conseguirem uma cozedura lenta, a de não desperdiçarem nenhum despojo do cevado somando-lhe cravinho, vinagre, sal, pimentão, alhos e louro, provam à saciedade ser o butelo um alimento delicioso, mas… de segunda. Eu prefiro um salpicão. E o leitor?