Qua, 02/11/2005 - 15:20
E o responsável é ASTÉRIX, o mais famoso dos pequenos grandes heróis de banda desenhada.
É verdade. O tempo passou e Astérix cumpriu 45 anos. De uma pena que nos libertou de tristezas e de neuras.
Em 1959, René Goscinny e Albert Uderzo recriavam uma tribo de gauleses, numa ideia que não era exactamente original. A estrela do grupo começa por ser um musculoso e intrépido guerreiro, de nome Astérix. Ao longo das primeiras semanas, o lápis de Uderzo transforma gradualmente as linhas da personagem, que perde o bíceps. Os ombros vão ficando mais estreitos, mas ganha em astúcia e sentido prático. Obélix, pelo contrário, vai vendo os contornos da sua cintura aumentarem, ao longo dos anos.
No seu conjunto, os habitantes da irredutível aldeia gaulesa apresentam traços claramente distintivos. A bonomia, narizes redondos, gosto pela zaragata, grandes bigodes, javali assado e aversão ao invasor romano são características que qualquer gaulês que se prezasse possuía em doses avantajadas. O facto do nome de todas as personagens terminar em ix constitui, por parte dos autores, uma homenagem a Vercingétorix – o histórico chefe gaulês que lançou as armas para cima dos pés de César.
O que estava em causa, inicialmente, no universo de Astérix era marcar a diferença. Mostrar que, em 1960, a banda desenhada francesa tinha um lugar que se queria cativo, como forma de competir com a BD americana, então em plena expansão. Quais “irredutíveis gauleses, resistindo ainda e sempre ao invasor”, Goscinny e Uderzo pretendem, então, criar – através da revista Pilote – “uma banda desenhada que se dirija verdadeiramente aos franceses”. O que, hoje, convenhamos, teria um contorno anacronicamente xenófobo. E nessa perspectiva, a família Astérix começou por ser acusada de um nacionalismo inchado, na sombra da administração de De Gaulle. É verdade que Goscinny e Uderzo mostram um conjunto de sinais específicos da civilização francesa, através dos seus antepassados, os Gauleses (contemporâneos dos nossos Lusitanos). Mas não é menos certo que muitas dessas características são implacavelmente caricaturadas em traços de autocrítica. E nem a pluralidade na unidade que subjaz ao espírito europeu ficou esquecida, o que é um claro sinal da permanente actualidade da saga Astérix. Porque “os temíveis gauleses” não se ficam pela sua Armórica natal, a actual Bretanha. Não, senhores. Eles vão ao Egipto; eles vão à Bélgica; eles vão à “Helvécia”; eles vão à “grande Bretanha”; eles vão a Roma; eles vão à Germânia”; eles vão à “Hispânia”...
E ei-los que, agora, até em terras de Miranda se esplancharam. Através da tradução para mirandês do primeiro livro da colecção: “ASTÉRIX L GOULÉS”.
A mim, alegra-me e comove-me que em Portugal exista uma segunda língua oficial. Porque ficamos culturalmente fortalecidos com mais esse instrumento de comunicação social e porque nos tornamos permeáveis à noção de língua enquanto elemento agregador de uma comunidade capaz de reconhecer as particularidades da sua história e da sua geografia.
E, justamente, com inteligência e espírito de adaptação soube o tradutor, Amadeu Ferreira, e seus colaboradores, transpor os nomes originais das personagens para a realidade de uma qualquer aldeia mirandesa. Onde as funções de “Cantadorix”, (o bardo, cantor de timbre muitooo agudo que “cuida que ye un génio”) ou de “Regidorix” (o “pimpon i baliente maioral de la tribo”) se tornam mais verosímeis pela cumplicidade civilizacional que representam, através da aproximação que se estabelece entre povos e culturas. E mais: tal como nós, também eles – gauleses – gostam de se alambonar com um “cochino muntês” à roda da mesa, fazendo “ua fiesta” e sempre lembrando que “estes romanos son boubos”.
Eu, que leio Astérix desde os doze anos, pensava que a frenética aldeia gaulesa já não me traria emoções novas, depois de todo o tempo em que fui aprendendo a reconhecer a crítica afiada à sociedade actual, através da ironia projectada num universo histórico que remonta a algumas décadas antes de Cristo. Mas ao ler, em mirandês, frases que me habituei a sentir como fórmulas cristalizadas, percebi que as palavras moldam a realidade e a percepção que dela temos:
“- Sinto-me um cachico zbalido, Panoramix!...
- Nó, Oubelix! Nun te dou la pocion mágica! Yá te dixe miles de bezes que caíste andentro quando eras pequerrico!”
E acredito que o tal caldeirão da poção mágica, onde o então pequeno Obélix quase se afogava, era bem capaz de estar num “lhugarico que rejiste bitoriosamnte al ambasor. Ua pequeinha aldé” mirandesa, digo eu.
“- Bós anganhestes-me, perros! Esta pocion nun ye mágica” – berrava o esgazeado centurião romano Caius Buonus a dois gauleses espertalhões que bem sabiam onde estava a verdadeira poção mágica.
Escreveu Amadeu Ferreira que “na sua já milenar epopeia para manter a sua língua, os mirandeses têm agora uma boa companhia para continuar, com mais esperança ainda, pois nunca precisaram de uma poção mágica para chegar onde chegaram.”
É verdade. O que os torna ainda mais invencíveis do que os irredutíveis gauleses – “heiróis que bencirun ls sous einemigos, por bias de la finura, la magie e l´ajuda de ls diuses”.
Fin de la cuonta...