Radicalismos e refluxos

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Ter, 14/02/2017 - 10:29


Entre as aplicações do materialismo dialéctico, com resultados úteis na observação da realidade, encontramos o modelo de análise do processo de interacção entre a superestrutura político-ideológica e a realidade profunda, resistente à mudança, mas sempre em transformação imperceptível, que designamos por infra-estrutural.
Uma observação cuidada permite-nos concluir que os voluntarismos radicais agitam a realidade à superfície, podem até gerar sobressaltos pontuais, mas tendem a ser absorvidos, mais cedo ou mais tarde, pelo esmagador peso da inércia do que não é racionalizável em termos individuais, mas condiciona e determina cada vida concreta, no tempo curto da sua passagem pelo mundo.
Naturalmente, as intervenções na realidade superestrutural não são inócuas e os seus efeitos também podem estar relacionados com aquilo a que chamamos as conquistas civilizacionais, com reflexos evidentes nos modos de relação social e nos modelos políticos que fomos conhecendo.
Mas, também sabemos que as dinâmicas de mudança enfrentaram prolongados tempos de diluição e, nalguns casos, vários milénios depois ainda não demonstram estar definitivamente consolidadas. Não que isto tenha que nos conduzir à demissão resignada, como se nada houvesse a fazer perante um determinismo inexorável. A humanidade é mesmo o resultado de miríades de actos inspirados nas mais diversas utopias, mas que não devem perder as referências fundamentais da racionalidade e do pragmatismo.
Nos tempos que vivemos temos assistido à consagração, em múltiplos países, de normativos legais, resultantes da acção denodada de grupos de pressão, tornados paladinos de novas moralidades, que tendem a tornar-se outras formas de totalitarismo, reclamando-se como os únicos politicamente correctos e condenando tudo o resto à condição de broncos infames.
De facto, a partir de capacidades inauditas de intervenção na superestrutura político-jurídica, vão-se impondo autênticas redes de novos inquisidores, puritanos q.b. de determinados dogmas, que diabolizam todos os que se questionam sobre caminhos abertos por entre os matagais de dúvidas que nos enchem a vida.
A construção de novos tempos gratificantes não parece poder-se atingir com rupturas espaventosas, resultantes da acção de egos caprichosos, sem nenhum sentido pragmático, convencidos que o mundo se virará do avesso no minuto seguinte.
O resultado tem sido espantosos fenómenos de refluxo, expressos em fundamentalismos religiosos e populismos enraivecidos, que ameaçam arrasar os feminismos obtusos ou serenos, as proclamações de quase divinização de determinadas opções de orientação sexual, a erecção de alguns animais em novos ídolos, com todos os efeitos trágicos que se adivinham em consequência de reacções que podem ser mais violentas do que a arrogância de quem demonstra não se orientar pela sensatez poderia imaginar.
O fenómeno Trump pode ter sido só o primeiro sinal.

Por Teófilo Vaz