Da ilusão do Natal à desilusão da vida real

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Seg, 23/12/2019 - 12:43


Este ano calha que o jornal sai oficialmente no dia de consoada, 24 de Dezembro, que toda a gente entende como o Natal verdadeiro, do bacalhau, do polvo, do azeite gostoso e, por cá, das rabas que trazem um toque da terra mãe, lembrando o abandono em que a fomos deixando, pecado sem remissão, por mais lágrimas que nos turvem o olhar, que a grande farra do consumo secará, qual lencinho de papel quimicamente perfumado, com insuspeitadas virtudes de iludir o cheiro incomodativo a morte, que espreita, gulosa, na próxima esquina da história.

O Natal é uma referência, como que um sinal de que a fraternidade é possível e há caminho para lá chegar. No entanto, só o faz quem quer, ou quem pode. Para querer é preciso ter a coragem do remorso pela acomodação ao egoísmo, pelo fingimento da solidariedade, pelo sorriso amarelo da caridadezinha, que não nos liberta da má consciência, apesar das luzes que escorrem das árvores de Natal de plástico.

Também há os que não podem, tal é a miséria da sua condição. Nem sequer lhes sobra ânimo para sentir além da raiva, do desespero ou da resignação, que não deixa réstia de alma para a partilha.

Tudo isto continua a marcar os fins de Dezembro de cada ano, mais de dois milénios contados a partir do episódio de Belém, nesse oriente que tem sido o norte da nossa civilização, recontado à medida das expectativas de atingir a consumação de um império do bem, sempre adiado e sob ameaças que pensávamos já não serem possíveis, porque não queremos reconhecer que a razão do repetido fracasso somos nós.

Por vezes, há momentos em que parece que tudo pode mudar, como aconteceu em 1914, a 22 de Dezembro, depois dos primeiros meses da grande guerra, quando as armas se calaram na frente de combate, com mais de 800 quilómetros, no terrunho europeu e os soldados se ocuparam a confraternizar, cantar, jogar à bola, dançar, trocar presentes, em vez de se metralharem mutuamente.

As chancelarias chamaram à ordem e, no dia seguinte, recomeçou o fratricídio, que deixou um rasto de sangue, miséria e indignidade como nunca antes se vira, mas não serviu de lição. Em pouco tempo se refinou ainda mais a capacidade de matar e o mundo passou pelos natais soltando gargalhadas de desprezo.

O tempo que vivemos não apresenta diferenças que permitam alimentar esperanças para o futuro, apesar de intervenções de figuras mundialmente reconhecidas, que não são ouvidas com atenção e, pelo contrário, são objecto de esgares malevolentes ou do desprezo de milhentas feras bípedes, conduzidas pelo instinto, mergulhadas na bestialidade, apesar da tecnologia, da ciência, da economia e da história que lhes poderiam ter propiciado a elevação à condição verdadeiramente humana.

Pelos vistos, despojados dos artifícios, não passamos de elementos pitorescos da biomassa do terceiro planeta a contar do Sol, uma estreloca de quinta categoria na galáxia e insignificante no universo.

Apesar desta crueza, o bacalhau, o polvo, as rabanadas e os afectos ainda valem um sorriso franco, antes de voltar à desilusão.