Escrever para o boneco

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Ter, 11/07/2017 - 10:45


A lendária história de António, o santo de Lisboa, a falar aos peixes, na sequência das orelhas moucas dos homens, já inspirou milhentas reflexões, mas continua a constituir um bom ponto de partida para falar da sina deste humilde editorialista.
Para além da função de informar sobre o curso dos acontecimentos, tentado enquadrá-los nas dinâmicas mais profundas, os jornais, primeiro, e os órgãos de comunicação social em geral, desde há quase um século, também se constituem como tribunas importantes para a partilha, a discussão e a decisão sobre o presente e o futuro das comunidades.
Se, nalguns casos, o que se vai publicando influencia realmente a decisão política, outros há que são simplesmente ignorados, como terá acontecido ao pobre santo. Fica-se com a sensação de que, apesar de reflectir a realidade do sentimento das populações, os responsáveis políticos ignoram, com ostensivo desprezo, o que por aqui se vai escrevinhando.
Ontem, uma chamada telefónica de um cidadão de Caçarelhos, no concelho de Vimioso, dava conta de que desde há cinco dias um número significativo de habitantes não tem telefone, televisão e internet: os que contam com o serviço da PT, que já não será PT, sabe-se lá. O senhor estava indignado e apelava para que a situação fosse denunciada na comunicação social. Era, dizia, inadmissível.
Apesar de todas as denúncias de tratamento discriminatório das populações da região, continuamos a sentir todos os dias a injustiça e a omissão deliberada dos direitos destas gentes, por parte de um Estado que não demonstra capacidade para cumprir o que a lei fundamental determina.
O caso das telecomunicações é só um entre muitos, com efeitos demolidores nas expectativas dos transmontanos. De facto, há situações ainda mais graves do que a sombra temporária sobre Caçarelhos, posto que há zonas, na região, absolutamente deserdadas no que respeita à rede de comunicações, mas onde continuam a viver pessoas que deveriam ser tratadas como quaisquer outras, as que vivem de palanque nas avenidas novas da capital ou na Foz do Porto, em grande moda por esse mundo.
Muitas vezes a nossa gente acumula aquela desgraça com a de nem sequer dispor de condições de mobilidade, porque há anos que não têm acesso a transportes públicos, que foram desaparecendo paulatinamente, ao mesmo tempo que os indivíduos envelheciam. Isto enquanto o “Público” anuncia que a Carris vai introduzir carreiras de bairro em Lisboa, para dar mais mobilidade às pessoas.
Os daqui resistem enquanto podem e inventam soluções originais, como acontece com gente de Mazouco, que o editorialista encontrou há tempos em Celorico da Beira. Ali vão apanhar o comboio para Lisboa e ali chegam da capital, revelando um sentido prático com que imaginam fintar as sacanices dos donos da bola, num jogo macabro em que ficamos sempre a perder.
Não tem faltado quem proteste, clame e refile, quem chame à razão. Parece que temos sempre o destino do pobre frade que ninguém quis ouvir. Talvez nos reste, não propriamente falar aos peixes, porque o mar não é já ali, mas, ao menos, convocar as bocarras dos tubarões para passar de palavras a actos que deixem marca e fiquem na memória dos que deliberadamente prejudicam as populações do interior.

Por Teófilo Vaz