Ter, 06/03/2018 - 10:25
Mais de mil e oitocentos anos passaram sobre um édito memorável, de Caracala, que generalizou a cidadania a todos os habitantes livres do território do império romano, abrindo um horizonte radioso para o ocidente da Eurásia. Foi em 212 d.c., culminando uma política de integração gradual das populações num modelo político e administrativo que continua a ser uma referência para as nossas sociedades.
Curiosamente o imperador da cidadania foi assassinado, na sequência de uma conspiração no seio da guarda pretoriana, no leste do império, na Mesopotâmia, ali junto da Síria, durante operações militares lançadas em território de influência persa, numa tentativa para consolidar a presença romana na região, guiada pela memória de Alexandre, o Grande, quatro séculos antes.
Aqueles factos longínquos permitem paralelismos inquietantes com a situação que vivemos nestes tempos de angústia, de incertezas, de verdadeiro risco de novas tragédias. É outra vez ali que se joga o futuro, que nos pode precipitar em novo milénio de desagregação política, cultural e económica, reconduzindo-nos ao cortejo de misérias e iniquidades que insistimos em varrer da memória.
No entanto, multiplicam-se decisões, formalmente democráticas, que põem em causa a estabilidade da União Europeia tal como a conhecemos nas últimas décadas. Assim, a tragédia pode estar mais próxima do que gostaríamos, mesmo se alimentarmos ilusões de que a mão de um deus maior acabará por nos poupar da descida aos infernos.
O Édito de Caracala fora o culminar de um percurso histórico com protagonistas de verdadeira estatura política, a começar no grande Augusto, passando pela obra marcante de Cláudio, por Trajano, Adriano e Marco Aurélio. Mas, mesmo essa notável construção ruiu, porque a mediocridade e a insânia têm sido a sombra da humanidade.
No mesmo território onde Roma se constituiu como pólo de um mundo que podia ser definitivamente novo, mas não foi, assistimos, no domingo, ao ressurgimento de nova ameaça grave, talvez a última antes do caos, à manutenção de um espaço civilizacional que poderia desempenhar um papel decisivo nos próximos séculos.
Afinal, a Itália não é herdeira da grande Roma. Depois da queda do império foram muitos séculos de localismos que cavaram divisões, agravadas pelo imediatismo de interesses inconfessáveis de protagonistas que nunca chegarão aos calcanhares de um qualquer imperador da antiguidade, mesmo de Calígula ou do famoso Nero, que não terá sido tão mau como o pintaram alguns escribas da história pitoresca.
Depois da Britânia, que foi romana por mérito de Cláudio e perseverança de Adriano mas veio a acentuar a sua índole saxónica e recentemente fez gala em desdenhar do ideal de unidade que se reerguia, se continuarem a irromper egoísmos à flor da pele na Bélgica, na Hungria ou na Áustria, só nos restará deixar a merecida homenagem ao império perdido, proclamando Ave Caracala, morituri te salutant, para nos entregarmos à luta fratricida, enquanto outros conduzirão os destinos do mundo.
Teófilo Vaz