Cronicando - O Retrocesso

PUB.

Desculpem-me os leitores se o título induz em erro, mas não vou falar de Trump. Para nós, portugueses, ainda é uma ameaça longínqua e, olhando para o último século, constatamos que, quando os outros países fecham fronteiras ou a agressão entre os povos culmina na guerra, Portugal tem sido o porto de abrigo. Disso tem feito jus a História. Os valores humanistas que nos caraterizam têm-se perpetuado, e, felizmente, neste campo, tem havido mudança mas não retrocesso. Ao retrocesso, por norma, atribui-se-lhe uma carga negativa, mas é ele que ocupa o meu espaço mental, porque há medidas inovadoras que são verdadeiramente recuos civilizacionais, travestidos de modernismo e infamemente envoltos no embrulho da dignificação da condição humana. Tudo tem o seu tempo, e este não é decerto para experiências sociais.
É o caso da substituição das cantinas sociais por cabazes alimentares que se tornou agora numa das bandeiras do governo. Tal medida irá abranger cerca de trinta e dois mil beneficiários, a maioria entre os dezoito e os sessenta e cinco anos, segundo a secretária de estado da segurança social, como se a capacidade física fosse o critério único para integrar o novo programa por quem precisa de se alimentar. Desconhece-se quantos têm possibilidades materiais para confecionar os alimentos ou ainda se têm os conhecimentos básicos para o efeito, mas isso não é relevante. Quanto se sabe, a distribuição será semanal, mas ainda não se ouviu falar se o cabaz é individual ou familiar e como se vai definir quem comerá mais ou menos. Mais avançados estavam os patrícios romanos que, em troca das vénias, distribuíam a sportula aos seus clientes e de seguida iam todos ao fórum para mostrar o poder do seu senhor.
Por mais que tente enquadrar esta medida numa ideologia socialista, não consigo vislumbrar onde poderá assentar, sobretudo quando, quase em simultâneo, foi divulgado um estudo que englobou 5600 portugueses com mais de 18 anos, onde se concluiu que uma em cada cinco famílias não tem acesso a uma alimentação saudável e que 19,3 por cento se encontram em situação de insegurança alimentar.
Alterar situações sem modificar os contextos é o que se tem feito em todas áreas, nos últimos quarenta anos, e não basta dar o peixe se não se ensinar a pescar. Bastaria aos decisores políticos descer à terra, e aos fazedores dos estudos erguer os olhos do monitor e perguntar como é na realidade a vida das pessoas. Será que tais agentes não sabem, por exemplo, o que acontece aos milhares de cabazes que por este país são distribuídos no natal a famílias carenciadas? Não se pode suprir a carência material se não for acompanhada de formação na cidadania. Até hoje ainda não vi nenhum programa que se preocupasse verdadeiramente com isso e, por tal, os resultados são os expectáveis. 
A garantia dada é que tais situações serão acompanhadas pela Segurança Social e serão avaliados – refere a Secretária de Estado. Poder-se-á perguntar se será do modo como acompanharam a IPSS de Alijó, onde as imagens apresentadas na TVI nos remetem para os tempos dos hospícios sem regras, saúde ou dignidade.      
Afinal não será apenas um retrocesso mas vários.

 

Raúl Gomes