Em Tartas, localidade francesa da Gasconha, pelo ano de 1625, nasceu uma criança que foi batizada com o nome de Tomás Luís. Seus pais (Cristóvão Luís e Isabel da Paz) eram cristãos novos de Bragança, fugidos da inquisição. Ambos se ligavam à família de Oróbio de Castro.
Em Tartas viveria até aos 11 anos, altura em que foi para Bordéus estudar gramática e filosofia. Por 1639, a família deixou a França e rumou para a Holanda, fixando-se na cidade de Amesterdão. Ali aderiram abertamente ao judaísmo, fazendo-se circuncidar e tomando nomes hebraicos. Tomás Luís passou a chamar-se Isaac de Castro.
Não sabemos, em pormenor, que escola frequentou mas é incontestável que acumulou vastos conhecimentos talmúdicos, conforme ficaria demonstrado ao longo do processo a que foi submetido. Sabemos que ele dominava perfeitamente o hebraico, o grego, o latim e o francês, para além da língua paterna. Tentou também estudar medicina, matriculando-se para isso na universidade de Leiden que, por qualquer razão, logo abandonou.
Sendo um jovem muito inteligente, com boa preparação filosófica e teológica, as autoridades judaicas de Amesterdão enviaram-no para o Brasil com a finalidade específica de ensinar a lei dos judeus. Aliás, ele seguiu para ali como acompanhante de seu “tio” Moses Rafael de Aguilar e do rabi Aboah da Fonseca.
Andaria o jovem Isaac por terras do Brasil Holandês (Paraíba, Olinda, Recife…) por 3 ou 4 anos. Em Dezembro de 1644 tinha já abandonado Pernambuco e encontrava-se na cidade portuguesa da Baía. O objetivo seria catequisar os cristãos-novos que ali havia e levá-los de regresso ao judaísmo. Para isso precisava apresentar-se como cristão pois, caso contrário, seria logo preso.
Seguindo essa estratégia, a primeira coisa que fez foi mudar o nome para Joseph de Lis e apresentar-se ao bispo da Baía, contando-lhe que nascera em Avinhão, terra governada pelo papa de Roma, onde era permitido ser judeu. Por isso ele não fora batizado mas circuncidado, pois seus pais eram judeus. E toda a vida ele fora judeu mas agora conhecera que a religião verdadeira era a católica. Por isso vinha humildemente pedir para ser batizado e admitido na igreja católica romana.
O bispo desconfiou e… depois de algumas investigações mandou prendê-lo e remetê-lo à inquisição de Lisboa. As razões apontadas podem resumir-se neste testemunho do familiar do santo ofício que o prendeu:
— O dito judeu se chamava Joseph Lis e dizia vulgarmente que viera a esta cidade a chamado de alguns homens da nação hebreia para lhe vir a ensinar as cerimónias judaicas…(1)
Embarcado na Baía em 5 de Janeiro de 1645, chegou a Lisboa em 15 de Março seguinte. Impossível resumir aqui o seu processo, verdadeiramente exemplar, em diversos pontos de vista. Desde logo pelos estranhos companheiros (espias) que lhe meteram no cárcere: dois padres sodomitas que o denunciam por rezar e “gaiar” à maneira dos judeus e fazer muitos jejuns, sempre com os pés descalços e a cabeça coberta. Explicará ele aos inquisidores que cobria a cabeça onde se geravam pensamentos imundos e por isso “era imunda e não se podia falar com Deus com ela descoberta”.
Mas o que é “verdadeiramente notável”(2) é um texto de 34 páginas que o jovem “rabi” apresentou para fundamentar a sua crença na lei de Moisés que “não tem coisa repugnante à razão e à verdade natural”, considerando alguns que esta foi uma das primeiras formulações do “direito universal natural à liberdade de consciência”. Mas vejam as suas próprias palavras, em resposta aos inquisidores que o aconselhavam a renegar a sua fé:
— Disse que ele não seguia a lei de Moisés por ser ou não ser batizado nem duvidar que a podia seguir livremente, senão por lhe parecer melhor para a salvação.(3)
E se os homens podiam salvar-se seguindo os preceitos da natureza, ele, por ser hebreu, nascido de pais hebreus e “sujeito às leis do povo israelítico, não podia haver salvação senão na crença da lei de Moisés”. Fundamentando este argumento, referiu que apesar de todas as “perseguições, calamidades e trabalho de tão longo cativeiro, como tem padecido e padece o povo de Israel, não só não é acabado mas antes se multiplica e cresce” mais que nenhum outro. E mais ainda: o povo hebreu é tão abençoado por Deus que até os cristãos têm por adágio: “corre-lhe o maná como a judeu”.
E não apenas os judeus são por Deus beneficiados em riqueza mas até os povos que os admitem entre eles. Assim, “entre as nações do Norte se tem entendido o mesmo, por se experimentar que os aumentos daqueles Estados se ocasionaram na felicidade dos judeus que ali vivem, porque entrando pobres nas ditas províncias não só se enriqueceram a si mas a todos os moradores delas como estes mesmos confessam”.
Impossível resumir aqui o seu processo. Diremos tão só que desde o início ele foi tido pelos inquisidores como “judeu profitente” e no próprio cárcere lhe foi apreendida uma “nomina” (tefilin) – duas peças de couro cosidas a maior parte, contendo orações judaicas, para pôr na testa e no braço.
Prova de que os inquisidores o consideravam “professor da lei” encontra-se no processo de Tomás Gomes, um jovem que foi então apanhado com um “Selly Hot”. Chamado a explicar o que aquilo significava, Joseph de Lis disse que “Selly Hot” quer dizer madrugada em Hebraico(4) e que “tem uma cerimónia que os judeus fazem rezando e tendo atos de contrição por espaço de 40 dias, se começa no mês de agosto e acaba a 10 da lua de setembro em que é então o jejum solene que chama Kipur…”
Tentaram os inquisidores reduzi-lo à fé cristã, enviando-lhe os mais qualificados mestres de teologia mas o jovem “rabi” para tudo encontrava argumentos. Um dos qualificadores concluiu assim:
— Digo que esta pessoa me parece tão pertinaz na crença da lei de Moisés que se deixava queimar vivo por ela.(5)
Na verdade assim aconteceu. Em 15 de dezembro de 1647 foi queimado vivo. E enquanto a fogueira se acendia e as chamas crepitavam, Isaac de Castro Tartas cantava o “Shemah”. Na verdade, ele foi um verdadeiro mártir do judaísmo.
NOTAS:
1 – ANTT, inquisição de Lisboa, processo 11550, de Joseph de Lis, tif. 67.
2 – COELHO, António Borges, A Inquisição de Évora 1533-1568, pp. 268-270, ed. Caminho, Lisboa, 2002.
3 – ANTT, pº 11550, tif. 160.
4 – ANTT, inquisição de Lisboa, pº 11560, de Tomás Gomes, tif. 47. Pub. ANDRADE e GUIMARÃES, Na Rota dos Judeus: Celorico da Beira, ed. Câmara municipal de Celorico da Beira, 2015.
5 – ANTT, pº 11550, tif 151.
Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães