NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Ferreira Sanches Isidro (n. Saucelhe, Castela, 1713)

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Nascida em Freixo de Espada à Cinta, por 1680, Francisca de Alvim casou em Castela com o boticário Francisco Sanches Maioral. Residiram em Saucelhe, uma localidade fronteiriça, no Douro internacional, onde lhe nasceram 3 filhos, um dos quais se chamou Francisco Ferreira Sanches, ou Isidro, sobrenome do lado materno.
Falecendo o marido, Francisca regressou com os filhos para Freixo, onde casou de novo, com António Nunes Cardoso, que, por sua vez, tinha uma filha bastarda chamada Isabel Luís, a Bacalhoa, de alcunha.
Por 1725, o agregado familiar encontrava-se distribuído do seguinte modo:
António Nunes Cardoso vivia em Portalegre, onde arrematara o contrato do tabaco. Trabalhando com ele, no estanco de Arronches, estava José Miranda Castro, marido da sua enteada Francisca Henriques de Oliveira, que também assistia em Arronches.
Luís Vaz Oliveira, outro filho de Francisca Alvim e Sanches Maioral, encontrava-se nas Minas Gerais, do Brasil, empregando-se como caixeiro de seu tio Francisco Ferreira Isidro. (1)
Em Freixo de Espada à Cinta, com Francisca, vivia Isabel, criança ainda, sua filha e de António Nunes, e o filho Francisco Ferreira Sanches, então de 12 anos. Isabel Luís, a filha natural de seu marido também morou com ela mas fugiu de casa havia 3 anos para Torre de Moncorvo, onde servia de criada.
No verão de 1725, no meio de mais uma vaga de prisões que arrasou as terras do Douro Superior, Francisca Alvim foi levada para a inquisição de Coimbra. E o filho, Francisco Sanches, meteu-se a caminho de Portalegre, ao encontro do padrasto e da irmã.
Em Portalegre, permaneceu duas semanas, sendo enviado para a vila de Arronches, a trabalhar com o cunhado, José de Miranda. Ali esteve uns 6 meses, posto o que todos eles deixaram o Alentejo e se foram para Lisboa. Ali, Francisco Sanches ficou trabalhando com seu tio materno, Henrique Vaz de Oliveira, que tinha estanco de tabaco no “Rossio, debaixo das casas de D. Luís da Silveira” e também era tratante de sedas.
Entretanto, o tio Henrique foi chamado à inquisição, saindo sentenciado no auto da fé de 13 de outubro de 1726. O mesmo acontecera, aliás, ao seu padrasto, à sua irmã e ao seu cunhado José de Miranda.
Certamente que tudo isso mexia com o nosso jovem, que viveria em permanente sobressalto, por estranhas terras e envolto em medos. De Lisboa abalou então para Valença, no Alto Minho, levado por Luís Miranda Castro, irmão de seu cunhado que, naquelas partes, era contratador do tabaco.
Seria o mais longo “estágio profissional” de F. Sanches que, tempos depois, se foi para o Porto, disposto a estabelecer-se por conta própria. Contudo, não encontrou quem o quisesse financiar, cedendo-lhe mercadorias a crédito, para ele vender. Encontrou sim um parente chamado Francisco Gabriel Ferreira (2) que em Julho de 1525 saíra sambenitado em Coimbra e que o aconselhou, nos seguintes termos:
- Que de nenhuma sorte se metesse com seus parentes maternos e pessoas da nação, e supusesse que não tinha pais; que fosse procurar vida em qualquer parte, sem ser conhecido, porque o haviam de prender e nunca havia de conseguir coisa alguma de cabedal; e se o conseguisse o haviam de perder.
Terá então decidido fugir para Inglaterra, falando sobre isso com um caixeiro inglês que trabalhava no Porto, que o incentivou dizendo-lhe que, como sabia ler e escrever, fácil seria lá conseguir emprego. 
Falou então com o piloto de um navio inglês e embarcou para Londres. Perto da costa o navio terá batido nas rochas, partindo-se, com o nosso jovem a agarrar-se a uma tábua e sobre ela nadar para terra.
Em Londres foi ter a casa do líder da “nação sefardita trasmontana” José da Costa Vila Real, que lhe não prestou qualquer atenção. Apenas o seu pai falou a Francisco e lhe indicou a casa de um parente chamado Julião Henriques, que ele procurava e a quem pediria ajuda.
Foi no dia 7 de janeiro de 1728 que o jovem Freixenista encontrou o seu parente que se prestou a ajudá-lo, sim senhor. Mas para isso, haveria ele de aprender a lei de Moisés e tornar-se judeu. Certamente que o jovem anuiu e passou a frequentar a sinagoga, levado por Julião, em cuja casa ficou vivendo. Ia de manhã e de tarde à instrução na sinagoga, onde encontrou um Miguel Nunes Fernandes, que estivera no Brasil e conhecera em Lisboa. E conheceu um homem que fora guarda da inquisição em Coimbra e fugira para Londres onde os judeus lhe davam “muitas e copiosas esmolas”.
Mas se a pressão sobre o jovem para se fazer judeu era grande, não seria menor a dos cristãos que em Londres também havia, protegidos e apoiados pela embaixada de Portugal. E terá sido assim que Francisco Sanches conheceu “o embaixador” António Galvão “que o recolheu e procurou embarcação e pagou o frete” e o mandou de volta a Portugal, aconselhando-o a acolher-se em casa de seu próprio parente Gaspar Galvão que o haveria de dirigir.
Embarcou no dia 15 de janeiro e em 24 de fevereiro seguinte desembarcou em Lisboa. Ao anoitecer desse mesmo dia, levado por Gaspar Galvão, dirigiu-se a casa do inquisidor João Álvares Soares que o mandou ir aos Estaus na manhã seguinte, apresentar-se na Mesa do santo ofício, onde contaria tudo o que passara. (3)
Tinha o jovem 15 anos, muitos caminhos percorridos, uma larga experiência de vida entre o judaísmo e o cristianismo, entre a igreja e a sinagoga, entre as cadeias da inquisição e o desejo de liberdade e afirmação pessoal.
Voltemos ao início, a Freixo de Espada à Cinta, ao encontro de Isabel Luís, filha de António Nunes Cardoso e de Maria Luís, então solteira e que depois casou com Bartolomeu Gomes, peneireiro de profissão. Façamos um parêntesis para dizer que o fabrico de peneiras era uma atividade característica de Freixo de Espada à Cinta que abastecia os fornos da região. Para além de Bartolomeu, vários outros membros da família tinham a profissão de peneireiro.
Isabel vivia em casa do pai e da avó, Isabel Cardosa, que a acarinhavam e lhe davam boa educação, conforme ela própria confessou:
- Assistindo na companhia do dito seu pai, antes de casar com a dita Francisca Vaz, lhe dava bom tratamento, como filha, sustentando-a de todo o necessário e a trazia bem vestida, pondo cuidado na sua educação, e tendo-lhe mestra que a ensinasse. E assim o mesmo pai como Isabel Cardosa, sua mãe, avó da ré e a sua irmã Mariana de Alvim Cardosa, tratavam a ré com muita estimação, sem a ocuparem nos empregos servis, mas só em serviços condicentes para a sua boa educação.
Depois que o pai casou com Francisca Vaz, as coisas mudaram, queixando-se ela:
- Francisca Vaz logo principiou a tratar mal a ré, pondo-a no estado de criada de todo o serviço, assim de casa como de fora dela, de rio e fonte, trazendo-a mal vestida e com sapatos de couro de vaca que lhe faziam chagas nos pés, tratando-a com muita aspereza e rigor (…) e do mesmo modo uma filha da dita Francisca que (…) por lhe fazer mal, formava queixas e acusações falsas e muitas vezes lhe deitava cabelos e fios de seda dos teares na panela de comer dos criados, que a ré cozinhava separadamente, só para que lhe imputassem estas culpas e fosse por elas castigada…
Perante os maus tratos da madrasta e o desleixo do pai, Isabel abandonou a casa paterna e foi-se para Torre de Moncorvo onde esteve 2 anos servindo em casa José Carneiro de Magalhães, um homem da nobreza da terra, morador na rua das Barreiras. Este, quando a madrasta de Isabel foi presa, não mais quis a moça em sua casa e despediu-a. Felizmente teve quem a admitisse: um homem de maior nobreza ainda e familiar da inquisição: Manuel Borges de Castro, em cuja casa serviu 3 anos e meio.
O pior estava ainda para vir. É que, estando já condenada à fogueira e de mãos atadas, a sua madrasta, confessou que se tinha declarado crente na lei de Moisés com seus filhos e com a sua enteada. E por quase dois anos, Isabel sofreu as agruras da cadeia da inquisição de Coimbra. E embora fosse declarada inocente, a verdade é que teve de pagar as custas do processo. (4)
Notas E Bibliografia:
1-Luís Vaz de Oliveira tinha uns 13 anos quando embarcou para o Brasil. Vivia nas minas do Ribeirão do Carmo, trabalhando com seu tio Francisco Ferreira Isidro. Em 1730, receando ser preso, tomou a iniciativa de se apresentar na inquisição de Lisboa, saindo no auto da fé de 17.6.1731. Depois foi viver para a cidade de Faro, na companhia de Gabriel Ferreira Henriques, seu parente – ANTT, inq. Lisboa, pº 9969.
2-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… jornal Nordeste nº 1104 de 9.1.2018.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 4727, de Francisco Ferreira Sanches.
4-IDEM, pº 2286, de Isabel Luís.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães