Misérias no país das maravilhas

PUB.

Seg, 07/09/2020 - 23:25


A vida como a conhecemos é uma aventura, sempre arriscada, neste planeta azul e provavelmente no universo de que temos notícia com os meios de observação disponíveis.
Os seres humanos, produto recente do rodopio cósmico, terão atingido a condição que designamos por consciência, as capacidades de comparar, temer, avaliar, prever, reagir, desistir para além da matriz dos instintos básicos.
Trata-se de uma espécie de mundo paralelo, a deslado da brutalidade dura da natureza, território dos sentimentos, dos sonhos, das desilusões, das tragédias, do medo, mas também da esperança, onde nos sentimos no reino do maravilhoso e do fantástico com que gerações sucessivas nos aconchegaram, mesmo se não nos livraram das misérias que, mais cedo ou mais tarde, fizeram valer a sua força demolidora.
É uma realidade estrutural nas comunidades humanas a propensão para o imaginário colectivo partilhar fantasias de uma idade de ouro original, onde se poderia voltar com ajuda de figuras sobrenaturais, com poderes mágicos, cheias de ternura e disponíveis para nos garantir a felicidade na próxima curva do tempo.
Assim se continua a crescer por esse mundo fora, sempre à espera de chegar ao tempo de todas as maravilhas. No entanto, tais maravilhas não descem do mundo etéreo à terra dura que pisamos, quedando-se por um memória sempre presente do improvável que queríamos possível. Afinal, o maravilhoso ou nunca existiu ou é intocável.
As maravilhas que se festejam na televisão há alguns anos servem para encher almas de entusiasmos curtos antes da prostração. Olhadas com frieza racional, pairam nesse mundo de fantasia, alimentam saudosismos inebriantes, rapidamente precipitados na melancolia, longe dos paraísos ideais.
De facto, na maior parte dos casos, os fenómenos celebrados estão a caminho de se tornar memórias difusas, sem reflexos no quotidiano das gentes, conduzidas pelo imediatismo, o utilitarismo, o hedonismo pançudo, misérias que facilmente estouram as maravilhas, reduzindo-as ao pó que é o nada que podia ser tudo.
Reparando bem, as tais maravilhas estão quase sempre ameaçadas de esquecimento ou de extinção para breve, apesar do seu valor referencial, relegadas para esse imaginário povoado de ilusões e fantasias, mais para coçar a alma do que para determinar a vida de cada um.
Muitos dos títulos têm sido atribuídos a realidades, festas e património histórico e cultural de territórios periféricos, discriminados e abandonados, o que poderá revelar tratar-se de simpáticos afagos a quem não resta mais do que lágrimas e suspiros de resignação.
Um concurso televisivo é o que é. Festas como estas não trazem grande mal ao mundo, mas são oportunidade para não nos deixarmos embalar pela música que nos querem dar, enquanto tomam decisões que comprometem o futuro de grande parte do país.
Anuncia-se que na próxima cimeira ibérica se procurará reverter a realidade dos territórios transfronteiriços, visto vivermos na raia menos desenvolvida da Europa, apesar de todas as maravilhas já identificadas por cá. Entretanto perderam-se décadas e mais décadas, o que pode significar uma fantástica e maravilhosa agonia.

Teófilo Vaz