Eutanásia e descanso eterno

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Ter, 18/02/2020 - 01:06


A vida também pode ser um fardo e a vontade de morrer não é uma novidade destas gerações que vivem tempos propícios a delírios sobre prenúncios de novíssimo apocalipse, definitiva tragédia, sempre esperada, prometida e reiterada, onde seria possível vislumbrar possibilidades de nos calhar um lugar entre os eleitos para a eternidade.
Descontada a miragem do paraíso original, a existência humana foi verdadeira epopeia até aqui chegarmos, patamar nunca antes atingido, com a dignidade, a liberdade, a autonomia na relação com a natureza e o conforto material a servirem os dias de um número crescente de viventes.
Mesmo assim, ninguém pode arrogar-se autoridade moral para apontar aos outros o caminho da celebração da vida, quando o sofrimento, a angústia, a desilusão ou o desespero de lhe encontrar um sentido podem conduzir ao desejo irreprimível do fim, sem mais nada, talvez na esperança de uma surpresa para além de todas as congeminações que os neurónios suportam.
Confrontamo-nos com o fio da navalha cósmica, cortante entre o tudo e o nada, impassíveis da apropriação real por quem quer que seja, Deus ou o Diabo das nossas noites de pesadelo, muito menos dos pretensos profetas de maravilhas ou desgraças, sem princípio nem fim.
Por isso, a morte só deve ser objecto de regulamentação quando se trata de evitar que resulte de abuso malévolo de outro ser humano, de um Estado ou da displicência do seu portador, de forma carinhosamente pedagógica, como acontece com as leis que nos limitam os caprichos do arbítrio e da euforia tonta na circulação automóvel, porque aí cada um pode tornar-se também numa arma letal para os outros.
Perante o sofrimento, sempre indizível, a compaixão pode levar-nos a participar no terminus de uma vida que mata a alma. A condição humana não se pode reduzir ao que é reconhecidamente objecto de normativas e o foro íntimo de cada um é um universo nem sempre tangível, pelo que nos deveríamos ficar pela misericórdia, mais emoção do que racionalidade, disponível para partilhar ou simplesmente respeitar as decisões dos outros, mesmo que lhes pressintamos a desnecessidade, o hedonismo, se calhar a soberba, ou simplesmente lhes reconheçamos o direito de deixar uma memória de vida enquanto honra e coragem na senda da utopia.
Mas essa é uma realidade do campo das emoções, que não cabe nos espartilhos da letra de forma. Fazer do direito ao suicídio assistido ou à eutanásia uma bandeira da política conjuntural, como se daí pudesse resultar vitória retumbante, não é um contributo sério para a relação das próximas gerações com as grandes angústias da existência.
No fim de contas, dessa forma, podemos não ir além da arrogância aparente de quem procura fugir ao terror da dúvida ou de uma atitude indiciadora de resignação pouco honorável, porque, afinal, se encara a vida como o famoso vale de lágrimas, o castigo merecido e quanto mais depressa chegarmos ao gozo da eternidade, melhor.
Talvez seja a razão para continuarmos a desejar eterno descanso a quem parte, como se estivéssemos condenados ao cansaço de viver.