Cuidado com os ventos da história

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Ter, 12/11/2019 - 02:00


Abascal surgiu do nada para liderar um grupo parlamentar de cinquenta e dois deputados nas cortes do reino vizinho, com arreganho e discurso cortante, a anunciar tempos de guerra política a sério, também nesta península que, num engano de alma ledo e cego, alguns quiseram ver a deslado da tempestade perfeita que avança, arrasadora, capaz de nos deixar de alma encharcada, enregelada, a pingar amarguras, com lágrimas e tudo.

Claro que não. Já há seis meses o Vox, partido liderado por Santiago Abascal, atingiu vinte e quatro lugares, trazendo à praça pública as mesmas questões, a ira crescente de alguns sectores da sociedade espanhola, irracional talvez e o apelo a uma resistência visceral às eflorescências caprichosas de diversidades, individualismos, tribalismos, deleites com o próprio umbigo, verdadeiro retorno ao apogeu da época barroca, sensual, orgíaca, onanista, petulante na festa do imediatismo, que esta vida são dois dias.
Na verdade, o que se passa aqui ao lado não pode provocar espanto, depois de surpresas sucessivas, um pouco por todo o mundo.
Começa a ser tarde para forças políticas que se proclamam defensoras da democracia resguardarem o fundamental em vez de se desgastarem nos jogos de conjuntura até à exaustão, ao desânimo, ao salve-se quem puder que, normalmente, resulta em grandes tragédias.
Abascales, Trumps ou Bolsonaros desta vida não surgem por obra do demónio, esse bode expiatório das nossas impiedades. São produto do hedonismo sem horizonte, que leva um número crescente de cidadãos, refastelados nas comodidades democráticas, a exigir tudo, aqui e agora, como se não houvesse amanhã, sem tomar consciência que o mundo tem pouco a ver com o mítico paraíso terreal antes da investida da serpente.
Quando a actividade política se torna simples feira de vaidades, mais cedo ou mais tarde o espaço público é tomado por mirones broncos, inconvenientes, instintivos, despeitados que podem varrer o terreiro num ápice, impondo retrocessos civilizacionais, autênticos poços sem fundo.
Nisto deveriam pensar os socialistas espanhóis, mas principalmente as gentes do Podemos e do Cidadãos, que abriram as portas a Abascal, também beneficiário da alergia à exuberância dos nacionalismos basco e catalão, numa Europa no fio da navalha, entre a pulverização que a aniquilará e a unidade que a pode salvar.
O nosso país não vai ficar imune ao fenómeno. A multiplicação de partidos é sinal de que as soluções serão cada vez mais difíceis, empurrando para alternativas autoritárias. Não seria a primeira vez a ouvirmos falar de “fado parlamentar”, da necessidade de moralizar a política ou de repor a ordem no país, proclamações que se sustentam nas aparências de um caos insidioso a tomar conta das nossas vidas, alimentadas pelo sensacionalismo mediático, mas principalmente pela displicência dos responsáveis políticos.
André Ventura também anunciou o crescimento vertiginoso do seu partido, porque sabe que espanhóis, alemães, polacos, húngaros, brasileiros, americanos ou portugueses, somos todos feitos da mesma massa e a vidinha de cada um vale mais que os destinos da humanidade.