O Príncipe Perfeito

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Os Reis Portugueses têm todos um cognome. Acho que é assim, ou era, em todos os Países com Realeza. Cognome é a palavra síntese que caracteriza o homem ou a sua obra. Curioso não acontecer aos Presidentes das Repúblicas este escrutínio que desemboca num epíteto. Esse epíteto, esse cognome é muitas vezes revelador da estaleca de estadista que esse Rei revelou. Ter de cognome “o gordo” ou “o formoso” como aconteceu a D. Afonso II e a D. Fernando respectivamente quer dizer que como Reis não fizeram nadinha pois o que sobrou dos seus mandatos foi o seu aspeto físico, só. Não sei quem fez este baptismo, se foi o povo, os cronistas ou se foi posteriormente um painel de historiadores. De qualquer forma sei que não foi o povo que baptizou D. Sancho II de Capeto. A um Rei que deixa fugir a mulher para os braços de Portocarreiro, um nobre de Ourém, e que deixa fugir o trono para as mãos do irmão, D. Afonso III, o povo encontraria um epíteto algo menos lisonjeiro que Capeto. O mesmo com D. Afonso VI a quem chamaram “o vitorioso”. D. Afonso VI deixou que o irmão D. Pedro II lhe roubasse a mulher, D.ª Francisca de Saboia, o trono e o metesse na cadeia. O homem a quem acontecem estes três revezes não é necessariamente um vitorioso. Em contrapartida a pessoa que inflige estes infortúnios não é de forma alguma um “Pacífico”, cognome de D. Pedro II. Também o cognome de D. Sebastião, “o desejado” me parece deslocado. Então um Rei que arrasta um País para uma guerra sem medir as consequências é desejado porquê? Para voltar a fazer o mesmo? Já o cognome de D. Diniz, “Lavrador” ou “Trovador”, não está à altura do visado. Chamar-lhe “Lavrador” parece querer dizer que é um iletrado, um boçal. “Trovador” sugere um homem boémio. Ora D. Diniz compôs “cantigas de amor”, “cantigas de amigo”, musicou algumas delas, foi o primeiro Rei a assinar o nome completo e criou a Universidade de Coimbra. Além disso mandou plantar o pinhal de Leiria, o que lhe valeu o epiteto de Lavrador, quando pelos vistos não eram árvores que ele queria, mas sim madeira para as naus. Viu mais longe. Fernando Pessoa chamou-lhe “plantador de naus a haver”. Assim estaria melhor. Por último, vejamos D. João II, o “Príncipe Perfeito”. Este Rei transformou Portugal num estado moderno (à época) centralizado e hierarquizado acabando com aquele conjunto de Ducados que era o Portugal de então. Nessa postura de senhor do Reino celebrou com os Reis Católicos um Tratado (de Tordesilhas) sem a interferência Papal, coisa inédita até então (como se sabe o Tratado de Tordesilhas dividia o Mundo desconhecido para Portugal e Espanha o que levou o Rei Francês Francisco I a perguntar “qual é a clausula do testamento de Adão que me proíbe de entrar nessa divisão?). Investiu na Ciência e no Conhecimento no sentido de descobrir o caminho marítimo para a Índia. Mandou Pêro da Covilhã por terra, Bartolomeu Dias por mar, apoiado por cartógrafos capitaneados por Zacut e tendo por explorador avançado o enigmático lobo do mar Duarte Pacheco Pereira (o Aquiles Lusitano de Camões) Portugal pedia meças ao Mundo em conhecimento marítimo. A ponto de, na negociação do Tratado de Tordesilhas, os Espanhóis ficarem surpreendidos com o à vontade com que dominávamos esses dossiers. Repare-se que os dois grandes feitos marítimos Espanhóis, as descobertas dos caminhos marítimos para a América e da volta ao Mundo feitas por Cristóvão Colombo e Fernão de Magalhães respetivamente, foram realizados por homens da escola Portuguesa (não há dúvida que quando Portugal investe em Ciência explodimos em excelências). D. João II pôs, de facto, Portugal no centro do Mundo a ponto de quando da sua morte, Isabel, a Católica, ter desabafado: “morreu o Homem”. Mas D. João II também tem outra face. Para deter o poder absoluto perseguiu, assassinou ou executou dezenas de pessoas e outras exilaram-se em Castela. Ao Duque de Bragança prendeu-o, julgou-o e degolou-o. Ao Duque de Viseu, seu cunhado, meteu-lhe uma faca nas costelas em plena praça pública. Ao Bispo de Évora prendeu-o e envenenou-o na prisão. Bom, foi um autêntico estado de terror. Então sabendo-se isto, continuamos a chamar “Príncipe Perfeito” a D. João II? SIM! A análise dos acontecimentos históricos não pode ser feita nem com lamechice, nem do ponto de vista do bom senso, nem à luz de princípios éticos, mas sim na verificação das alterações que esses acontecimentos provocaram no percurso histórico desse país. Por exemplo: D. Afonso VI perdeu a mulher e o Reino para o seu irmão, mas a História considera isso perfeitamente irrelevante. Por outro lado, releva o facto de nenhum outro Rei ter ganho tantas batalhas a Castela e isso sim foi importante para o País. Daí lhe chamar o “Vitorioso”; D. João II matou o cunhado, envenenou o bispo, mas o País não teve qualquer sobressalto. Estes acontecimentos não passam de estórias da História, de epifenómenos de um fenómeno maior. Já a História releva a forma Perfeita como conduziu o País até ao topo da notoriedade. Estamos a falar de D. João II, mas podíamos estar a falar de Otelo Saraiva de Carvalho. Pese embora àqueles que trazem a democracia atravessada nas goelas e que portanto o elegem como o inimigo público nº 1, a História não vai perder muito tempo com os mandatos de captura em branco, com as fanfarronices, com as putativas ligações às FP 25, mas vai registar o nome do homem que foi o rosto do 25 de Abril porque este acontecimento alterou por completo o pulsar do País.

Manuel Vaz Pires