Historicamente, a família Monteiro Carvalho é uma das mais nobres de Freixo de Espada à Cinta. Remontando ao século de 500, ali vivia o casal constituído por Diogo Garcia de S. Miguel e Isabel Monteiro Carvalho, que foram os pais de António Monteiro Carvalho, que vivia de sua fazenda e tinha o emprego de guarda a cavalo das alfândegas e portos secos. Era um emprego de importância estratégica pois o porto e alfândega de Freixo registavam então um extraordinário movimento de pessoas e mercadorias, até porque nesses anos os dois países ibéricos estavam unidos debaixo do mesmo trono, sendo as feiras de uma e outra banda da fronteira frequentadas por mercadores de ambos os países. E foi por causa de facilitar a fuga de “judeus” para Castela que o guarda António Monteiro Carvalho foi preso pela inquisição, em 1629.
António era casado com Catarina Pereira Varejão e estes foram os pais de outro António Monteiro Carvalho (1) que, criando-se em Freixo, foi fazer vida em Madrid e Lisboa, na casa do “fidalgo D. Álvaro de Sousa”. (2) Quando regressou à terra natal, depois da revolução de 1640, vinha já casado com Maria Saraiva Cardoso, de Marialva. E estes foram os pais de Manuel Monteiro Carvalho que terá nascido em Freixo de Espada à Cinta pelo ano de 1647 e foi batizado em Marialva, onde seus pais viveram algum tempo.
Manuel casou com Maria Coelho Zuzarte, de outra nobre família freixenista, recebendo de seu sogro, em dote, um olival no sítio de Riba Boa, uma vinha às Fontainhas “que leva de cava 10 homens” e 2 tapadas e 2 courelas ao Santoquixo. Para além disso, o sogro, Pedro Lopes da Fonseca, passou para ele o emprego de meirinho do judicial.
Seria com muito espanto que, em Julho de 1669, as gentes de Freixo assistiram à prisão de Manuel M. Carvalho, (3) juntamente com sua mulher e 2 cunhadas, pela inquisição de Coimbra, denunciado como sendo cristão-novo e acusado de se ter declarado por judeu.
Levado para Coimbra e dizendo ser cristão-velho, houve primeiro que apurar a qualidade do seu sangue. Foram para isso interrogadas 40 testemunhas, de avançada idade e reconhecida idoneidade, para além de outras que os comissários ouviram extrajudicialmente, fazendo-se diligências em Freixo de Espada à Cinta, “Maria Alva” (4) e Celorico da Beira, terra de sua avó materna, Guiomar Saraiva Cardoso, (5) que “uns parentes levaram ainda pequena para Marialva, onde a casaram”. Todas as testemunharam e o parecer dos comissários foram unânimes sobre a qualidade do sangue e o Conselho Geral proferiu o seguinte despacho:
- Assentou-se que ele é cristão-velho legítimo, limpo de toda a raça de cristão-novo…
Prosseguiu então o processo destinado a averiguar a veracidade das denúncias, provando ele que os denunciantes terão agido por ódio e vingança. E aqui reside o maior interesse do processo de Manuel Monteiro Cardoso. É que as suas contraditas constituem um verdadeiro tratado do viver quotidiano da vila de Freixo de Espada à Cinta naquela época.
Vamos então para a casa do sogro de Manuel Monteiro, que era vizinha da casa de Isabel Madeira, filha única, cujo pai falecera e que vivia de sua fazenda. Havia entre eles uma grande familiaridade, tratando-se até por parentes. Isabel seria um bom partido e o sogro de Manuel tratou de a casar com o seu filho João Coelho da Fonseca, então ocupando o cargo de meirinho delegado pelo pai. Mas o João é que não estava pelos ajustes do casamento.
Pelo meio meter-se-ia então um grande amigo de Isabel, chamado António Rodrigues Pereira (6) que, por seu turno, tinha entrada na casa do marquês de Távora, que então era o governador de armas de Trás-os-Montes. E António Pereira foi falar com Luís Álvares de Távora que chamou a Chaves o João Coelho Zuzarte e o colocou perante o dilema: ou casava com a Isabel ou ele o obrigaria a sair de Freixo recrutando-o para soldado. João terá respondido que não casaria com ela e antes iria para soldado. Efetivamente João foi feito soldado e o cargo de meirinho foi então delegado em Manuel Monteiro, seu cunhado.
Enraivecido por não conseguir o casamento da amiga (e não “ganhar a fanega” (7) - dizemos nós), o mesmo António Pereira foi depois a Freixo e, encontrando o pai de João, puxou de uma faca… e só não o espetou porque aquele fugiu. E sempre foi comentando que Pedro Fonseca fazia bem melhor casar o filho com a Isabel do que a filha com o “judeuzinho de Marialva”… e dizendo-lhe as pessoas que o ouviam que Monteiro Carvalho não era da família de judeus… “ele mudou de cor e se foi da conversação em que estavam”.
Francisco de Almeida era, de certo modo, o líder da comunidade hebreia de Freixo e grande inimigo de Manuel Carvalho. Porquê? Aquele trazia arrendada uma fazenda de um parente seu. E falecendo este, Manuel, na qualidade de tutor de uma filha órfã, tentou tirar-lhe a fazenda, antes do tempo contratado, metendo uma ação no juízo de Freixo, a qual perdeu. E recorrendo para o juízo da correição, perdeu também. Mas conseguiu tirar-lhe uma casa que trazia também arrendada, com o argumento de que não pedira autorização ao juiz dos órfãos. E daí nasceu a inimizade.
Mas a inimizade do Almeida com a família de sua mulher tinha ainda outras razões, uma delas motivada porque, estando os Almeida a passar a fronteira, vindos de Castela, em uma noite, com fazenda contrabandeada, foram vistos pelos guardas da alfândega que os perseguiram. Não os apanhando, foram, com o escrivão da alfândega “dar varejo em casa do dito Francisco Almeida para descobrirem a dita fazenda”. O escrivão era… Pedro Lopes da Fonseca… Claro está que…
As lutas entre os cristãos-novos de Freixo, quase todos ligados por laços familiares a Francisco de Almeida e a Francisco de Matos, este originário de Foz Côa e aquele de Almeida, ganharam mesmo contornos políticos. De modo que, sendo juiz de fora interino e, consequentemente, presidente da câmara de Freixo, Domingos Lopes da Fonseca, irmão do sogro de Manuel Carvalho, foi aprovada em reunião de câmara uma deliberação no sentido de expulsar da terra todos os que dela não eram naturais.
A deliberação não foi cumprida… imagine-se: porque os “carmijuteiros” (assim chamavam aos de fora) conseguiram um despacho do tribunal da inquisição de Coimbra “para os não despejarem da terra”. Estranha esta imiscuição dos inquisidores na vida política de um recôndito vilarejo trasmontano! Possivelmente receavam perder o proveito dos bens sequestrados aos Freixenistas que tinham presos.
Dissemos atrás que, com o recrutamento do cunhado para a tropa, Manuel Monteiro tomou posse do lugar de meirinho. Pois, no exercício de tal cargo, sabendo que um Duarte Nunes e uma Ana Nunes, cristãos-novos, primos entre si, andavam amancebados, fez participação do facto no tribunal de Freixo, processo que subiu à relação do Porto e cujo desfecho não conhecemos.
Muitas mais histórias do viver coletivo quotidiano dos Freixenistas se contam no processo de Manuel Carvalho Monteiro que, naturalmente, foi declarado inocente.
Notas:
1-O casal teve outro filho chamado Manuel Monteiro Carvalho que foi sacerdote e uma filha, Joana Monteiro Carvalho que casou com João de Gamboa, de igual nobreza e fidalguia.
2-Trata-se, certamente, de Álvaro de Sousa, que vivia em Madrid à data da Restauração e fugiu para Inglaterra e para Lisboa, não obstante a concessão do título de conde de Ansiães pelo rei Filipe IV, com o objetivo de o aliciar contra o novo regime entretanto instaurado em Portugal.
3-ANTT, inq. Coimbra, pº 8969, de Manuel Monteiro Carvalho.
4- Maria Alva – assim aparece escrito. Ao final da diligência, o inquiridor escreveu: - Não faça aos senhores inquisidores reparo eu tirar tantas mulheres, porque homens antigos não os há nesta vila…
5-Os pais de Guiomar Cardoso eram donos da Quinta de Espinheiro, que tinha uma capela particular onde eles foram sepultados.
6-Embora cristão-novo, António Rodrigues Pereira era feitor da alfândega de Mogadouro.
7-Pelo menos em algumas terras da região do Douro Superior, perdurou até meados do século XX, o hábito de dar uma fanega (4 alqueires) de cereal à pessoa (inculcador) que proporcionava condições de casamento com alguém que se pretendia.
8-António Rodrigues Pereira foi preso pela inquisição de Coimbra e, enquanto esteve preso, faleceu Isabel Madeira. Na mesma ocasião foi também presa uma Francisca Soares, amiga do mesmo Rodrigues Pereira, moradora em Freixo e antes de ser presa, entregou valores em casa de Isabel Madeira, para escapar ao seu confisco pela inquisição. Aconteceu que, quando foi solta e regressou à terra, foi a casa de Isabel reaver o seu “fato”. Não o conseguiu porque Catarina Ribeira, meia-irmã de Isabel e sua herdeira universal, disse que não sabia de nada e nada tinha para lhe dar, ameaçando-a aquela “que não quisesse vir para onde o réu (Manuel Monteiro Carvalho) vinha e a sua gente”.