FALANDO DE... VERGÍLIO FERREIRA

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Neste quotidiano remansoso, onde a paz nos acaricia e o Inverno faz figas para que a neve não apareça, para tristeza dos jovens e afastamento dos forasteiros, habita dentro de nós, numa clausura ansiosa de libertação, a inquietação do pensado, do vivido e do construído em vivências de diálogos adiados. Estremece-nos o corpo, aguardando por um parto sem data marcada, esperando maturação.
Até que o dia aparece. Muitos foram passados sem que déssemos conta de uma vida que parecendo latente, se vai construindo de projectos e de sonhos do porvir.
A crise parece debelada e os profetas do optimismo alimentados pela liberdade e oportunidade que nos proporcionaram, eis que o momento azado marcou encontro. Lidos os jornais, assomados à janela do efémero, compartilhamos o prazer da comemoração. Memoramos Vergílio Ferreira em centenário de nascimento, e em vinte anos de partida em retorno de livros que a Quetzal vai reeditando.
Debruçados na memória, vemo-lo no Liceu de Bragança, no ano lectivo de 1944/45, depois de ter leccionado durante dois anos no Liceu de Faro. Em Bragança, com 28 anos, será professor de Português e Latim, ele que se licenciara em Filologia Clássica pela Universidade de Coimbra, aproveitando o Latim que tinha aprendido no Seminário do Fundão, frequentado durante seis anos.
Em Bragança, não permanece mais que um ano. Vivia-se em plena Guerra. Residindo numa pensão muito perto do Liceu, na rua que vai da Praça da Sé para a Estação, à direita. Eram comensais, outros professores, também solteiros. Fora um ponto de passagem. Com o seu nome a fazer parte da toponímia de muitas cidades, Bragança não o esqueceu, atribuindo-lhe o nome a uma das artérias.
A farmácia Mariano era local de entretém, ouvindo histórias da Guerra Civil de Espanha, contadas pelo senhor Mariano e pelo médico Moreno, o mais novo de dois irmãos médicos.
Contudo, Bragança não terá sido o espaço mais aprazível para o escritor que, entretanto, publicara o livro Onde tudo foi morrendo, que lhe foi apreendido, sendo agora reeditado pela Quetzal, num trabalho que incluirá toda a obra vergiliana. Em Diário Inédito- 1944-49, edição de Fernanda Irene Fonseca, publicado pela Bertrand em 2008, declara, em 10 de Outubro de 1944, alguma animosidade em relação a Bragança, confessando, no entanto, a sua simpatia pelo Dr. Amado (Adrião Martins Amado), ex-reitor, ex-governador-civil e ex-padre, que nos seus setenta anos conserva uns pulmões de ferro e um vozeirão tonitruante.
Conquistados os dias e revolto o húmus, alimento da sua prodigiosa criatividade, em 1960 inicia-se na atribuição de prémios. É-lhe conferido o prémio Camilo Castelo Branco pela Sociedade Portuguesa de Escritores. A partir daí, o seu trabalho vai sendo reconhecido pelas Instituições Culturais, sendo dos escritores portugueses mais galardoados, tendo-lhe sido conferido o Grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada.
Com uma vida dedicada ao ensino, vai confessando amiúde que não gosta de dar aulas, encarando a profissão tendo em vista os víveres. É um professor sem vocação, caído no agnosticismo, educado por duas tias e uma avó, por força da emigração dos pais para os Estados Unidos da América. Dos exames transparece uma tarefa de policiamento e de função arcaica, abstendo-se de dizer mal da profissão porque cumpre razoavelmente
Ser professor liceal é uma profissão relativamente cómoda para se realizar como escritor, pelas horas livres que lhe deixa, ao mesmo tempo que afirma que a docência retarda ou impede uma certa qualidade de adulto pelo contacto quase exclusivo com jovens.
Com o liceu feito, sem lhe terem dado um livro para ler, foi escrevendo poesia que não publicou. Eça despertou-lhe um interesse especial, ensinou-o a escrever. É o maior de todos os tempos no que se refere ao valor das palavras, embora as suas problemáticas não o interessem sobremaneira, ao invés de Raul Brandão que está próximo de si pelas temáticas tratadas, como o valor do homem, da sua dignidade, da sua plena realização. Muitos são os escritores que aprecia, lendo, habitualmente, mais que um livro, embora cultive menos o romance. Dostoievski, Kafka e Malraux fazem parte da galeria dos seus preferidos, considerando o primeiro, o génio absoluto da literatura.
Homem às artes dado, prosador de enorme prolixidade deixou um rasto de grande qualidade na obra vasta que legou à perpetuidade do seu nome.
Iniciado no neo-realismo, daí retirou a aprendizagem da dignidade do homem, não se desligando do homem enquanto ser existente, é um escritor ocupado e preocupado pelo “eu” no seu ciclo existencial, naquilo que terá de mais característico e pendular: o silêncio, a noite e a morte, na sua manifestação de solitário, em busca de um percurso com vista à consecução de um objectivo, no Existencialismo ao encontro da verdade.
Não escreveu tudo quanto deveria ter escrito, conquanto afirmasse, ao acabar um livro que aquele seria o último. Nascera em Melo, concelho de Gouveia em 28 de Janeiro de 1916, aí voltará para a imortalidade em 1 de Março de 1996. O seu corpo está virado para a Serra da Estrela.
Os que por cá ficaram e não o esqueceram, gritaram hossanas em seu louvor. Gouveia, Porto e Universidade de Évora comemoraram-no, lembrando-o em tempo de aniversário, recebendo João de Melo, que com ele conviveu, o prémio Vergílio Ferreira, pela sua obra.
A Imprensa Nacional Casa da Moeda evoca-o em agenda, formato 22x26,5, em papel encorpado, capa cartonada.
E Bragança, por onde passou,onde viveu e escreveu Vagão J, que faz?...
Aguardemos melhores dias…
Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico

Por João Cabrita