O Arménio

PUB.

O Arménio nasceu pobre. Para a esmola ser menor nasceu filho de pai incógnito. Raras vezes, na sua meninice usufruiu de duas refeições seguidas de tirar a tripa de misérias. Na Páscoa, na festa em honra do senhor São Pedro, quando o convidavam a participar na matança dos porcos. Pouco mais.

Ser zorro na aldeia não era novidade, o ferrete saía das aguilhadas, galhas, e palavras acintosas quando o infeliz menino, era o menino meu predilecto companheiro de infância, praticava um qualquer acto a desagradar às zelotas e ímpios das públicas virtudes e vícios privados, nessas alturas tal como as escrófulas eram exibidas pelos pobres de pedir (havia muitos) o signo sainete de ser filho de mãe solteira soava perto da casa da avó (a senhora Albina) como o sino maior da igreja lembrava a todos o ir principiar a missa dita pelo Padre Aurélio que deixava a égua rabuda numa loja de um homem de semblante terroso, lábios cortados à navalha, avantajado na estatura, por isso chamado Xico-grande. Este sebandija espancou vil e violentamente o Arménio porque aos seis anos de idade lhe cortou meia dúzia de favas com a minha cumplicidade. O bruto bateu no rapazinho como o malhador bate em centeio verde. O Arménio não viveu num palacete de brasão esquartelado a significar bastardia, viveu numa decrépita casa com um cabanal esborralhado no terreiro de Lagarelhos. Na origem do berço reside toda a diferença apesar de inúmeros zorros terem singrado na vida.

O corpo inerte do Arménio foi transportado para junto da segunda mãe, colocaram-no em cima do escano, vi a extremosa avó limpar-lhe os lanhos com vinagre, e rugia para dentro a sua revolta brotando lágrimas de revolta impotente. Os vizinhos dissuadiram a mãe da criança de apresentar queixa na guarda por que sendo pobre e tendo um filho zorro não podia pagar a demanda nem conseguia respeitos, ela mulher obscura, a Nair tratada por Naíde, ele proprietário e anfitrião do pároco da freguesia. Vi o meu querido amigo salpicado de nódoas negras sem eu nada poder fazer; salvei-me do mesmo tratamento em face de o lapuz ter receio de enfrentar o meu tio e padrinho e a mulher dele ser amiga da minha avó. Por mim continuo fremente de raiva em virtude não ter podido auxiliá-lo, no que tange ao sinistro espancador passei a desviar-me dele, a nunca lhe falar. Os anos foram correndo, os pobres continuaram a salmodiarem orações até receberem a esmola quantas vezes de comida desdenhada pelos cães, ou a remendada resposta: hoje não pode ser. O Arménio cresceu, ingénuo e confiado, quando pretendia participar nos bailes de inverno, os «bondosos» rapazes pediam às «bondosas» raparigas para o atraírem levando enterrar as socas na cama do lodaçal em redor do «tablado» da bailação.

A vida levou a espaçarmos os encontros, a necessidade levou a emigrar, primeiro foi explorado em Espanha, três ou quatro duros por dia, de ver a ver, era o horário, veio-se embora.

Encontrei-o na festa em honra do chaveiro do céu, na procissão o Senhor São Pedro vai no andor, chaves numa mão, olhar sereno de pescador de almas, cabelo canoso, barba a condizer, túnica azul debruada a ouro, vai abençoar as mulheres, os homens, as casas, ao campos. Tudo. Do meu quintal observei os padres e os fiéis a cantarem e a segurarem os andores, também vi o Arménio, não tardou a abraçar-me aos repelões batendo-me as mãos calejadas nas minhas costas. Não tardaram os seus olhos a explodirem em lágrimas, logo seguidas de explicação da causa: quis ajudar a levar um andor. Os «generosos» rapazes da mesma idade impediram-no! Nada lhe disse. Estivemos tarde fora a reviver facécias da meninice, desaconselhei-o a não se meter no baile. Passados dias, em Bragança, deu-me a novidade: vou para França. E, na terra dos gauleses mourejou durante anos, casou com uma portuguesa das bandas de Celorico da Beira, teve filhos e regressou. Acidentalmente, no dia posterior ao funeral do seu tio Cândido voltámos a abraçar-nos. O momento não propiciou grandes efusões, combinámos um encontro no nosso terrunho de infância que nos proporcionou grata alegria ensombrada ao rememorarmos aqueles atrozes episódios de falta de nome do pai, nessa altura já ele podia assinar Bernardes pois a mãe casara com o Sr. Regino pai dos seus irmãos, o Lelo e o Eugénio. A rememoração deslizou até o seu filho, moço de quinze ou dezasseis anos lembrar a hora de partida. Um abraço, desceu as escadas da casa Buiça, eu fiquei a rever a sua imagem de menino triste, de olhar receoso trespassado de inocência, que me estendeu um bocado de queijo amarelo (flamengo) cortado de uma rodela recebida pela mãe numa acção de farisaica caridade da assistência social de Vinhais. Eu estava ansioso em cravar os dentes naquela novidade destinada às pessoas de reduzidos ou nenhuns recursos.

Há quatro meses, na Feira do Fumeiro de Vinhais, a sua Tia Gracinda encontrou-me a conversar com o Teófilo, por ela soube da morte do Arménio na sequência de um cancro. No regresso até onde vivo, durante quatro horas, o menino de pele e dedos gretados a suarem dolorosas gotas de dor que se chamavam frieiras povoou a melancólica viagem. O afã temporal foi substituído pelo medo e imposição de regras consequência da pandemia. A evocação do Arménio foi sendo adiada. Tardiamente reparo a falta.

Armando Fernandes