Inquisição – lutas políticas – limpeza de sangue (7) - Os filhos do capitão-mor Álvaro Morais de Ataíde

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Todos os 3 filhos do capitão-mor Álvaro Morais Ataíde (Francisco, Maria e Catarina) foram presos pela inquisição em fevereiro de 1667, vítimas da “conjuração” urdida pelos cristãos-novos contra a gente da nobreza de Vila Flor. E é nos processos de Maria de Morais de Ataíde e Francisco Morais Ataíde, seu irmão, que podemos ver com toda a nitidez os pormenores e os autores de tal “conjuração”.

Desde logo pelo teor das denúncias, absolutamente coincidentes e manifestamente preparadas. Seria o caso de Constança Rodrigues e Filipa Jerónima, que se apresentaram em Coimbra em 27.2.1667 e, dali regressadas, abalaram para Castela. Ambas disseram que “haverá 6 anos e um mês” (…) em casa da mãe de Filipa Jerónima (…) celebraram a páscoa comendo pão asmo (…) juntamente com os 3 filhos do capitão-mor e que estes tinham parte de cristãos-novos, sendo ainda seus parentes.

Provaram os Ataídes que tudo fora planeado por Diogo Henriques Julião, o qual “lhe dissera que quando fossem a Coimbra fossem tão ajustados no que dissessem, que havia de igualar as coisas como dois dedos juntos, e nisto pusera os dedos um junto do outro, dizendo que assim haviam de dizer as coisas ajustadas, que não desmentissem umas das outras”.

Igualmente provaram que “vindo-se acusar (…) os filhos

de Domingos Fernandes, Miguel, Belchior e Luísa e sua cu­nhada Filipa e Jerónimo e sua sobrinha Constança e pelo assim fazer, foram logo para Castela industriados pelo Diogo Henriques”.(1)

Para além disso, Maria de Morais apresentou provas em como Diogo Henriques não se limitou a organizar a “conjuração” com os cristãos-novos de Vila Flor mas, inclusivamente, angariou testemunhos falsos de cristãos-novos de Chacim, Vimioso e Freixo de Numão,(2) gabando-se aquele de que os nobres de Vila Flor “não hão-de ser soltos por não conhecerem as pessoas que lhe formaram as culpas, por serem de várias partes”.

Fica assim muito claro que a luta política entre cristãos-velhos e cristãos-novos em Vila Flor não só continuava, mas ganhou mais intensidade com a “conjuração” que levou às masmorras do santo ofício uma grande parte da gente da nobreza de Vila Flor, que, no dizer de Francisco Ataíde “entendia ser cristã-velha (…) mas não sabia se por esta via tem ou não alguma parte da raça de cristão-novo”.

Também não resta dúvida que a causa próxima da “conjura” foi a prisão de 35 cristãos-novos ao início do mês de novembro de 1664 e a causa remota foi assim descrita pelo mesmo Francisco Morais Ataíde:

— O pai do réu, capitão-mor, e seus parentes e homens nobres e graves de Vila Flor, vendo que Diogo Henriques e seus parentes se queriam intrometer em quererem tomar em si o governo da terra, assim no secular e quererem servir nos ofícios da justiça e nas prisões; com muita ousadia e atrevimento, pegarem e tomarem as varas do pálio; o pai do réu e parentes acometeram e ajuntaram os mais cristãos-velhos e nobres de Vila Flor e aí jogaram muitas pancadas e cutiladas, aonde os acutilaram a todos e cada um deles, e fizeram á força recolher e meter em suas casas e com efeito nunca mais nenhum deles pegou em varas do pálio. E disso o pai e parentes do réu e todos os homens nobres de Vila Flor, vendo a soltura com que o dito Diogo Henriques e seus irmãos e parentes e todos os cristãos-novos se haviam e com o muito atrevimento e ousadia se intrometiam para servirem ofícios principais da república e governança; como também quererem tomar as varas do pálio, o pai do réu que nisso mais insistiu, obteve uma provisão de Sua Majestade para que nenhuma pessoa que fosse cristã-nova ou que tivesse parte alguma da nação, não servissem mais na dita vila ofícios principais nem da governação, de sorte que os privaram assim das varas do pálio como servirem em ofícios de governação, nem de juízes, nem vereadores, nem outros semelhantes.(3)

Promotores da lei da limpeza de sangue, os nobres de Vila Flor, acabariam por sofrer duplamente os efeitos da mesma. Por um lado, sendo denunciados como judeus pelos cristãos-novos, sofreram todos os horrores das cadeias do santo ofício. Por outro lado, necessitando de atestados para se habilitarem a cargos públicos ou títulos honoríficos, viram seus pedidos recusados. Foi o que aconteceu com José Morais Beça, neto de Maria de Morais Ataíde que, 100 anos depois, em 6.2.1769 pediu uma “certidão por onde conste que sua avó Maria de Morais Ataíde, que foi presa por essa inquisição, saiu pura, sem condenação alguma”. Recebeu como resposta que sua avó tinha parte de cristã-nova “pelo que nos parece não ter lugar a certidão pedida”.(4)

Voltemos a Francisco de Morais Ataíde para dizer que quando foi preso pela inquisição, morava em Torre de Moncorvo em casa situada junto à Fonte do Concelho. Mas tinha comprado há pouco uma quinta no sítio das Gamonitas, na zona da Vilariça, junto à Quinta do Carrascal, por 100 mil réis e nela começado a construir as casas. Trata-se da atual Quinta do Ataíde, propriedade da família Symington, uma das mais interessantes do Douro Superior.

Os processos da inquisição constituem também uma importante fonte para o estudo da sociedade. A título de exemplo, veja-se esta interessante confissão feita por Catarina do Sil,(5) trasladada no processo de sua irmã, Maria de Morais Ataíde:

— Disse que haverá 6 anos, em Vila Flor, em casa de sua sogra futura, Maria Coelho de Madureira, viúva de Jerónimo de Morais Beça, homem nobre, se achou com ela e com uma filha da mesma chamada Maria Coelha, defunta, e com Maria do Sil Sampaio, cristã-velha, casada com Francisco Morais Ataíde, parte cristão-novo, irmão dela confitente, e com Maria de Morais, sua irmã dela confitente, casada com Jerónimo de Morais Beça, homem nobre, e com uma moça chamada Maria, parte cristã-nova, filha bastarda, e com Maria, solteira, filha de um lavrador (…) e as duas moças chamadas Marias se admitiram por se não acharem outras que tivessem o nome de Marias.

— E estando todas 10, por conselho de sua tia Maria de Morais, fiaram esta e as ditas pessoas e mandaram tecer, cortaram e fizeram no mesmo dia uma camisa de pano de linho cru, por se dizer que era boa para preservar de morte violenta e de outros males quem a trouxesse vestida, sendo fiada e tecida por 9 Marias. (…) Era para a darem ao dito seu irmão Francisco de Morais, agora preso, o qual naquele tempo andava muito receoso que o matassem ou mandasse matar Domingos Afonso Galego, governador da cavalaria da província de Trás-os-Montes, por se dizer que entrara em casa deste, a ter conversação ilícita com uma mulher mulata do mesmo. (…) E depois da dita camisa feita e acabada a levaram, ela confitente e as outras 9 mulheres, no mesmo dia, sendo de noite, à igreja da Misericórdia, da própria vila, onde tocaram com ela nos pés de uma imagem de Cristo nosso senhor, que costuma ir com a cruz às costas na procissão dos Passos, e depois a mandaram ao dito seu irmão que naquele tempo assistia homiziado no mosteiro dos frades de S. Francisco, de Torre de Moncorvo.

Voltando a Maria de Morais diremos que ela saiu no auto-da-fé de 12.3.1673, onde abjurou de leve. Era casada com Jerónimo de Morais Beça, homem nobre, feitor geral das alfândegas de Trás-os-Montes. Ao sair da cadeia, a prisioneira devia 149 mil e 900 réis, de alimentos e custas do processo. O marido fez então uma exposição pedindo que tal dívida lhe fosse perdoada, uma vez que provou estar inocente e ser presa por falsas denúncias. Veja-se a informação que os inquisidores de Coimbra deram para o inquisidor-geral decidir:

— Parece-nos que, em razão dos serviços que fez a esta inquisição seu sogro, o capitão-mor de Vila Flor, pode Vossa Senhoria mandar ao suplicante que pague 80 ou 100 mil réis e se lhe perdoe o mais.

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 9302, de Maria de Morais Ataíde.

2 - Inq. Coimbra, pº 209, de Francisco Morais de Ataíde: — E no tempo em que a viúva de Dinis Álvares e Manuel Ferreira seu genro e Francisco Ferreira, cunhado de Genebra Alvim estavam presos e depositados em Freixo de Numão, veio ter com eles Diogo Henriques Julião, de Vila Flor, a falar com eles, a mandar-lhe recados que, sem dúvida, foi para os advertir que culpassem o réu e seus irmãos e parentes.

3 - Idem.

4 - De contrário, Manuel Ricardo de Morais Beça, filho de José Morais, obteve, em 13.12.1754, um alvará de mercê de um emprego público. Os tempos eram outros. Na chefia do governo estava já o marquês de Pombal. – Registo Geral das Mercês, D. José I, liv.8, f. 424.

5 - Inq. Coimbra, pº 8759, de Catarina do Sil.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães