Boas festas

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De certeza, as festas se não forem boas não são festas. Do mesmo modo, as festas só podem ser felizes, se acarretarem um cisco de desgosto não devemos chamar-lhe festas. O leitor faça o favor de não pensar na possibilidade de ter tomado bebida desapiedada daquelas responsáveis por eflúvios violentos ocorridos em concentrações ruidosas, nada disso, apenas confrontado com áspera dissonância – não quero falar das Consoadas passadas no terrunho Natal de onde nasci e vivi –, no entanto, a intenção esboroa-se porque o sentimento de pertença telúrica não se lance num infinito vazio, mas antes para que também esteja em condições de calcular a capacidade de distanciamento do cordão umbilical e confesso a incapacidade em o conseguir. 
Sozinho e incompreensível aos do meu centro familiar porque do «meu» mundo das torgas, das giestas, das estevas, têm uma revelação de outro mundo, «plantado» rente ao Tejo, e nas terras do Tio Sam.
E, ante sorrisos a raspar gelo fino obrigo a semblantes de espanto ao repetir em jeito de pregoeiro a sapidez única do molusco de oito braços rivalizando com a vitela mamona daí o apodo, a macieza acetinada das rabas cozidas canonicamente, nem demais, nem de menos, tudo tido assim pareceu insólito.
Insólito para eles, cheio de significado, maravilhoso e envolto num secreto encanto. Podia aduzir personagens na intenção de proteger-me da possível risada não decorrentes de reisadas da quadra, sim da exteriorização inculta de desconhecimento da leveza suculenta do dito cujo polvo vitela. 
Já apreciei polvo nos quatro continentes trabalhado dentro das sete cozeduras, no domínio da denominada alta cozinha ou das receitas do cone sul-americano, nas planícies geladas da América do Norte, na África, na Ásia, porém o aveludado tenro é pertença das Mestras nortenhas, transmontana e galegas.
Na noite da aglutinação familiar o polvo apresentava-se em duas versões – cozido e frito em polme finíssimo – sendo normal sobrarem troços do frito. Eu não sei se neste tempo de telemóveis a comandar as refeições os jovens são capazes de intuírem as gradações sensitivas de bocados de polvo frito quentes ou frios no dia de Natal à hora de almoço. A sós, acolitados por fatias de pão trigo ou centeio. Uma delícia esplendorosa. Afianço.
E as rabas? A quadra poética refere as rabas de Soeira. Não coloco em causa a sabedoria ancestral de quem as qualificou, asseguro a extraordinária qualidade das colhidas nas hortas da Coxa. A Coxa seria uma senhora dono de teres e haveres sendo notada dado possuir riqueza e uma perna atrofiada, as referidas terras hortícolas recebiam (não sei se ainda sobrevivem) o húmus do Fervença transformado em legumes, raízes e frutos apaziguadores de carências durante o ano inteiro, os produtos sobrantes alimentavam os animais domésticos, os vegetais e os animais constituíam aprazível rendimento dos proprietários e rendeiros dos talhões denominados hortas.
E, na época natalícia surgiam as rabas. Excelsas. Nos anos trinta e quarenta do século passado os senhores do mando na área turística solicitaram às autoridades de Bragança uma lista das receitas de grande saliência da cozinha bragançana. Na resposta incluíram – rabas com ovos –, quando leio o documento penso na elevada sensibilidade palatal dos autores do rol culinário.
Estimados leitores: pode parecer lamúria, binária, excessiva ao redor logo me roda de dois alimentos seculares do povo nordestino, não teço considerações históricas (até por falta de espaço) sobre eles, lembro isso sim, de forma objectiva quão úteis foram no passado, também exalto a sua relevância no contexto de comunidades circulares sem grandes possibilidades de escolha.
Agora que principiaram a surgir bastantes estrelas no firmamento gastronómico português seria uma enorme sagacidade as Mestras e os Chefes do Nordeste conceberem novas formulações culinárias tendo no polvo e nas rabas elementos primaciais. Sem mimetismos, sem copianços. De talento. Até porque vão surgir instrumentos de difusão internacional.
Vou continuar a ser-lhe fiel até ao fim apesar de obrigar-me à resignação de não ver sobre a mesa da ceia tão refulgentes matérias-primas.
Boas Festas, Festas Felizes!
Armando Fernandes