Normalização e responsabilidade

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Seg, 04/05/2020 - 22:36


É comum ouvir reflexões sobre a capacidade de adaptação do ser humano às condições extremas que não faltaram nesta caminhada, já longa, à superfície da Terra.
Mesmo a guerra, com o rol de atrocidades que traz consigo, não tem impedido o renascer do alento a que chamamos esperança. É verdade que se vai construindo uma normalidade estranha, em convívio permanente com o risco, por entre canhões, bombas, saques e razias, cheiro intenso a morte, penúria, miséria física e moral. Mas alguns resistem e ficam para contar a história e refazer o mundo ou, pelo menos, a ideia de como ele poderia ser.
A humanidade, ao contrário do que pode parecer às gerações que aqui chegaram desde a segunda metade do século XX, não tem sido um desfile triunfal até às portas do novo ou do velho Éden, conforme estivermos a ouvir profetas do futuro radioso ou saudosistas de uma qualquer idade de ouro original.
As epidemias, associadas à fome, à guerra ou ao oculto inesperado varreram os séculos até há bem pouco tempo. Aparentemente, o último grande terror teve lugar há cem anos. As pestes estão referenciadas desde a antiguidade, nas civilizações dos grandes rios, na época clássica, durante a prosperidade romana.
A alta idade média não fugiu à regra, embora o refluxo demográfico, o isolamento das comunidades e a economia de subsistência, pelo menos na Europa, lhes atenuassem a frequência.
Mas a reurbanização das populações, a partir da transição do primeiro para o segundo milénio da era cristã, trouxe nova frequência do fenómeno, que terá atingido ponto culminante no meado do século XIV, com múltiplos surtos de peste bubónica (a peste negra), que conheceu réplicas nos séculos seguintes, até bem dentro de setecentos, quando já se festejava um futuro que se cria enquadrado pelo conhecimento racional, pela evolução irreversível da ciência e das suas aplicações práticas, a tecnologia, que trouxe mudanças notórias nas condições da vida quotidiana, proporcionando confortos que iludem os condicionamentos que a natureza continua a impor-nos, porque se descurou o trabalho sério sobre as ameaças que espreitam nas esquinas obscuras do tempo.
A situação que vivemos não é uma novidade na história. Nós é que já não estávamos habituados, mesmo sabendo que há focos de outros agentes infecciosos tão ou mais perigosos que este.
Estamos a lidar com um fenómeno que não foi estranho a gerações sucessivas, que, para se defenderem, utilizaram métodos muito semelhantes aos que nos são agora aconselhados, naturalmente com as devidas diferenças no que respeita às condições económicas, de salubridade, de funcionamento dos sistemas de saúde, que são incomparáveis.
Por isso, o processo agora iniciado, de retoma das actividades económicas, deverá ser entendido com a responsabilidade cívica que se espera de gente instruída como nunca aconteceu no passado, com acesso a informação permanente, que tem todas as condições para exercer o seu direito à liberdade. Mas todos sabemos que a liberdade tem como limite os direitos inalienáveis do outro, o próximo, que devemos amar como a nós mesmos, como dizem os cristãos.

Teófilo Vaz