Oportunidades perdidas

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Há um provérbio chinês que diz haver 3 coisas que nunca voltam atrás. E serão elas: A flecha que se lança; a palavra que se diz; e o que não se faz. Também assim são as oportunidades perdidas. Perdem-se. Nunca mais voltam. E não me refiro só às oportunidades perdidas por omissão mas também aos maus desempenhos. Num mau desempenho perde-se uma bela oportunidade de o mesmo ser bom e além disso pode não haver emenda.
Foi no período de desenvolvimento frenético a que Bragança assistiu que algumas dessas oportunidades se perderam. O “Polis” e o “Procom” foram possivelmente algumas delas. É verdade que tudo ficou mais arranjadinho, mais composto mas apesar da injecção maciça de capital, o pulsar citadino na zona de intervenção, em lugar de trazer sinergias, retorno, novas dinâmicas, não, saldou-se por perdas. Talvez a culpa não fosse de ninguém, ou antes, talvez de todos mais a circunstância. Essa circunstância febril que fez pensar que o importante era gastar o dinheiro que a Europa punha à disposição, fosse de que maneira fosse. Sem mesmo atender a que nesse dinheiro havia componente Nacional. Isso fez com que não se perguntasse, não se discutisse, não se ponderasse, não se compatibilizasse enfim, não se melhorasse.
1-A tentativa de criar uma Praça, centro cívico, no espaço onde outrora existia um mercado, resultou num falhanço. A agora Praça Camões, como todas as Praças, deveria ser definida pelo casario que a circunda. Mas não é assim. A Sul e a Este é definida, respectivamente, pelo que restou dos antigos talhos e pelo prédio que albergou o velho cinema Camões. Este último, uma construção literalmente plantada no meio de uma Praça, só faz lembrar uma outra que existiu, bem perto dalí, na cerca dos rapazes do antigo Liceu. Era a sala de Canto Coral e até lhe chamavam a Arca de Noé. Lembram-se? Por outro lado o “ground Zero” da nossa Praça do Mercado é a fachada principal do edifício dos talhos, depois de vazado todo o resto da construção. Um autêntico memorial, que faz lembrar a Igreja Madre de Deus em Macau. Só que, enquanto em Macau a inspiração era na “coisa Celeste”, no caso presente a inspiração era bem mais terrena. Num talho.
Um memorial é o sinal físico de homenagem, para memória futura, a pessoas ou coisas cujo desaparecimento causou dor e deixou saudade. Pois mesmo ao lado do atrás falado “memorial”, uma massa informe de pedras e ligante, que dizem ser as fundações duma Catedral nunca feita, também foi elevada a esse estatuto. Só um arroubo Pessoano justificaria uma homenagem ao que não existiu. De tão surreal chega a ser poético.
(Já agora: onde é que o projectista leu que o rachão é o pavimento apropriado para os carrinhos de bébé ou saltos altos? E os calos!?)
2- O parque de estacionamento é o exemplo acabado duma obra feita à pressa, sem cuidado e sem estudo. Falta-lhe uma segunda entrada que seria naturalmente servida pela viela adjacente à torre da Sé, conhecida pela viela do Novais. Alguém com o carro na Praça da Sé tem de dar volta a meia cidade para estacionar no Parque. (e já imaginaram a dificuldade que uma pessoa, na Praça da Sé, experimenta para explicar a um forasteiro como deve fazer para se dirigir ao parque de estacionamento? E o parque está ali!) Por outro lado não percebo a razão porque o parque não abeirou o piso -1 (menos um) do quarteirão de casas que fecha a praça a Norte. Se tivesse sido feito, numa futura requalificação das referidas casas, poderiam os proprietários comprar a possibilidade de fazer cave com garagem com entrada pelo parque de estacionamento. Eliminar-se-ia, assim, um dos grandes óbices da requalificação urbana, para aquele quarteirão, claro.
Mas o erro fatal do parque de estacionamento está numa questão de cotas. Intencional ou negligente não sei mas indelével, é. Ficará, portanto, para sempre. O ressalto que cria à superfície inviabiliza qualquer praça. Poderemos ter ali um palco para um qualquer jogo cénico mas praça, enquanto centro cívico, nunca mais teremos.
3-O Procom alargou os passeios na zona onde não há moradores deixando só uma pista para os automóveis. Como se isto não bastasse colocou uns marcos em fundição junto à guia do passeio. Desta forma um veículo bloqueia o trânsito. E tanto pode ser o carro dos bombeiros transportando um acamado, que gera bichas monumentais, como pode ser um veículo abandonado intensionalmente para impedir uma perseguição policial. E já que falamos de segurança devemos ter presente a dificuldade que os Bombeiros experimentaram quando acudiram a um incêndio ao fundo da rua Direita. Será que temos de viver com o “síndroma do Chiado”?(no incêndio do Chiado os Bombeiros não conseguiram manobrar na rua do Carmo por causa das floreiras)
Os marcos são um atestado de menoridade cívica passado aos Bragançanos como que mostrando a necessidade de delimitar espaços a quem por si só não o sabe fazer. Parece que sem estas baias não saberíamos por onde andar. Até nos estacionamentos os há como provam as portas, dos automóveis, danificadas por passageiros distraídos. Como teremos vivido outrora sem estes elementos definidores do que é de Cesar? Valha-nos ao menos esta inesperada semelhança com a Havana de Eça de, “esse paliteiro de palmeiras”.
Ninguém pediu isto mas no entanto temos que viver com o que há. Vem-nos à memória o drama de S. António de Arenilha, uma aldeia de pescadores. Marquês de Pombal achou que eles viviam mal e fez ao lado uma aldeia muito melhor, Vila Real de Santo António. Ninguém se mudou voluntariamente, mas o Marquês obrigou-os a mudarem-se para lá. Ninguém gostou mas teve que ser. Eram os tempos do Iluminismo Despótico. Parece que foi ontem.
4-Outra das oportunidades perdidas, no meu ponto de vista, foi não ter instalado a Escola Superior de Educação no antigo Liceu. Bem sei que os tempos não privilegiavam esta opção. Os académicos enchem a boca com o “campus Universitário” uma quintinha só deles e cuja tradução óbvia é um gheto para Estudantes. É ver o que aconteceu no Porto. Os estudantes que outrora davam cor, alegria, jovialidade ali pela Praça dos Leões estão agora acantonados com os outros, lá para os lados do S. João. Acredito que essas concentrações tragam consigo algumas economias de escala mas trazem também perdas sociologicamente importantes e até sementes de violência. Grandes grupos etariamente homogéneos e jovens, vivendo no seu reduto, logo sem travões sociais, são um caldo de cultura para uma escalada de violência. Admira-me que as Escolas fiquem surpreendidas com a subida de tom nas praxes académicas. ( Jung já há muito tempo explicou isso na sua Psicologia de massas. Parece que já ninguém se lembra de quando um grupo de recrutas decidia ir ao cinema.)
Bragança não fugiu a este figurino. Os estudantes acantonados no seu campus e a Cidade ao lado. E agora imaginemos a Escola Superior de Educação a funcionar no antigo Liceu. Os alunos povoariam a Praça da Sé, conviveriam connosco, trariam até nós a sua cultura, a sua alegria, a sua jovialidade e também o seu “non sense” e a sua rebeldia. Nós emprestávamos-lhes o nosso saber de experiencia feito e ensinávamos-lhes que também é bom parar, às vezes. Poderia ter sido uma simbiose quase perfeita. Eles o motor cultural e vivencial da Cidade e nós o travão a alguns desmandos.
Acresce a isto um pormenor que não é despiciendo. Se esta hipótese (a colocação da Escola Superior no antigo Liceu) se tem verificado, não estaria, agora, o município a braços com o problema da requalificação urbana na zona de influência da Escola. Partindo de um adquirido que as casas da Zona Histórica não são recuperáveis para a função da habitação de famílias clássicas (sem garagem e elevador ninguém quer as casas) são-no no entanto para estudantes do ensino superior. E porquê? Jovens, são menos exigentes e a maior parte não tem carro logo dispensa garagem. Por outro lado o estudante só quer quarto e casa de banho e ser no 3º andar nunca foi problema para jovens de 20 anos. Não é preciso ir a Coimbra.
5-O que se fez na Av. Cidade de Zamora é emblemático dum Iluminismo tardio. Digo isto porque a obra avançou inexoravelmente, mau grado os avisos, os reparos, as sugestões e até as petições. Obra feita para melhorar as condições de utilização, não tem, na Avenida, defensores entusiastas. O alargamento exagerado dos passeios com a consequente diminuição das dimensões destinadas ao estacionamento e ao tráfego e ainda o facto deste ter de se processar em “chicana” justificam a rejeição. A falta de estacionamento, onde sempre houve excesso de oferta, o facto de praticamente todos os moradores terem na sua rubrica de despesas um pneu rebentado, fruto do novo desenho da Avenida, e a constatação de que arrumar o carro na garagem é manobra para “volantes”, levam-nos a concluir que, se não se tem gasto dinheiro, estaríamos melhor.
6-A forma como se projetou a saída do túnel para a Avenida das Forças Armadas é absolutamente inédita. Depois de percorridos algumas centenas de metros naquele “glaucoma” terrestre, eis que nos deparamos com uma “chicana” cuja imprevisibilidade espanta o mais cauteloso. Este remendo, que surpreende em obra nova, ter-se-ia evitado se se tem dado ouvidos a reclamações mais que legitimas. Mas o poder é sempre pouco humilde.
7-Há uns anos a esta parte que assistimos a um esvaziamento da Praça da Sé no que concerne a actividades, ritmo, gente. Mesmo até as intervenções feitas pelos poderes públicos, que parecem ser no sentido de apoiar essas actividades, mais aceleraram a desertificação. O primado dos museus e de outras estruturas pesadas, que geram pouco ritmo e nenhum arrastamento, fazem pensar que há uma vontade não confessa de mudar a centralidade de Bragança. É verdade que a dispersão ameaça acabar com a centralidade da Praça mas não cria outra e sem uma centralidade Bragança não é uma Cidade, é um bando de gente. Arautos disseram que a centralidade se tinha deslocado para a Av. Sá Carneiro por se ter tornado a zona comercial mais importante. Mas mesmo que a Av. Sá Carneiro tenha um incremento fortíssimo no seu comércio isso não lhe confere condições para ser centro cívico, ser portanto uma centralidade de Bragança. Mas quer seja verdade que se quer acabar com a centralidade da Praça da Sé quer não seja, um facto é que se perdeu uma oportunidade de ouro de criar uma nova. E isso foi quando da urbanização da Quinta da Braguinha. A dita urbanização, que se nota que é da Câmara pelas cedências-mais generosas de áreas para equipamentos urbanos em tudo o resto é uma urbanização igual às outras. Arruamentos com construção em altura. Agora imagine-se uma urbanização desenhada toda em torno de uma Praça (tipo Praça Maior de Salamanca) localizada onde está o jardim. Acho que uma nova centralidade surgiria inevitavelmente. Bragança estaria diferente e isto não seria incompatível com o centro cívico antigo. Frequentar centros cívicos cria hábitos de cidadania. O mal é não os haver.
( Com tantas urbanizações novas e em nenhuma se vê um passeio em arcadas, uma rua coberta, uma praça ou qualquer outro elemento distintivo. É tudo mais do mesmo.)
8-O edifício do teatro é um edifício “sui generis”. Para aceder à sala de espetáculos tem de se subir a escadaria para depois descer umas escadas de forma que no fim desta operação o espetador se encontra à mesma cota que estava no início dela. Digamos que é um exercício de resultado nulo, se descontarmos o facto de termos passado para o lado de dentro. Já tinha visto isto no filme “o Sr Hulot” de Jaques Tati. Mas, aí, Tati pretendia tirar partido do “nonsense”, do caricato da situação porque tudo isto se conseguia com uma porta. Mas o projetista tinha que nos vender a sua “casa da música”
9-O terminal de camionagem é uma obra Faraónica, pela sua dispersão e custos, onde a funcionalidade e o conforto dos passageiros foram tomados de forma ligeira. Terminal dos transportes urbanos, num sítio; terminal dos transportes de longo curso, noutro; bilheteiras, no primeiro; táxis, a meio caminho entre os dois; terminal de carga, num ponto diferente de qualquer destes e estacionamento, não há. Esta é a descrição sumária do terminal de camionagem com que um Calatrava de 2ª nos obsequiou. É o oposto do interface. Neste, há vários serviços num ponto. No nosso caso temos de ir a vários pontos para um serviço. E não havia razões para errar. A antiga gare do caminho-de-ferro, na disposição das suas peças, era uma lição de como deve ser um terminal de transportes.
10-Mas a obra que mais criticas me sugere é uma obra não feita. Parece paradoxal. Como criticar uma obra que não existe? Quais são os erros de uma intervenção que não aconteceu? Para responder a isto não podemos esquecer que também é pecado “não guardar castidade nos pensamentos e desejos”. É o facto de se ter posto a hipótese da sua realização que torna as críticas pertinentes. A intervenção prevista para a Av. João da Cruz, para a qual existe projeto e “maquete”, desvirtuava por completo a Avenida tal como a conhecemos. Essa proposta urbanística, cujos méritos não vou questionar, só não foi materializada porque houve um assomo de bom senso ou medo politico. A Avenida que tem mais de 100 anos, única com jardim central, foi o resultado do crescimento da cidade no sentido da saída que à época era o comboio. Custa-me ver tanta ligeireza e tanta falta de respeito ao propor ou até promover alterações em conjuntos que fazem parte do nosso imaginário. Aliás entende-se mal, que as Câmaras emanem portarias onde obrigam o cidadão a respeitar tradições em edificações no que concerne à traça, fenestração, disposições construtivas ou aplicação de materiais e em contrapartida promovam alterações drásticas numa malha urbana com mais de 100 anos. E mais. Bragança é um condomínio de todos os Bragançanos. Ora, se para fazer alterações num condomínio é necessário o beneplácito de todos, como pode um executivo arrogar-se no direito de decidir por todos, nestas matérias. Para decidir, por si só, já tem as novas urbanizações, as novas avenidas, onde pode com todo o à vontade mostrar a sua criatividade e rasgo arquitetónicos, os seus novos conceitos urbanísticos ou os seus novos paradigmas de ordenamento urbano.
11- Gostar de Bragança é gostar do existente apesar dos seus defeitos. Não quer dizer que não haja pormenores a melhorar mas isto implicaria que novos visuais, novos ordenamentos, novas orgânicas, novas funcionalidades nas zonas cativas pela memória coletiva fossem escrutinados ao milímetro. Não percebo que se goste de Bragança e a pretensão seja alterar tudo o que são referências dos seus moradores.
Enfim, que ter amor a Bragança o seja, tão só, porque…sim.

 

Por Manuel Vaz Pires