Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Henrique Nunes (n. Madrid c. 1620) – 2

PUB.

Andava Henrique Nunes ainda a cumprir a penitência, sem que lhe tivessem tirado o sambenito quando, em Lisboa, se viu acusado da morte de Baltasar Rodrigues Cardoso,(1) cristão-novo, de Vila Flor, contratador das alfândegas de Trás-os-Montes, que tinha casamento marcado com uma filha de Pero Henriques Ferro. Preso pela justiça civil, foi então metido na cadeia do Limoeiro, onde penou 6 anos, saindo em 1660, degredado para o Brasil. Conseguiu evitar o degredo, fugindo, de barco,(2) para Espanha, via Cádis, em companhia de seu genro, mercador que acabava de “quebrar”, ali se juntando depois as suas mulheres.

Por 10 anos andou Henrique negociando em Espanha, assistindo em muitas terras. E terá também viajado por França e Itália, ali frequentando sinagogas de judeus, conforme testemunhos chegados à inquisição, nomeadamente o de um mercador de Nice, chamado João Batista Mariz que ali o encontrou usando o nome de Jorge Torres, acrescentando:

— Assim se tratava e ele denunciante o viu ir à sinagoga, na forma que fazem os mais judeus na dita cidade, e também o viu ir às sinagogas de Liorne e Génova, estando ele denunciante nas ditas cidade e a última vez que o viu foi em Génova, em uma casa de pasto de Catarina Ferroya, aonde comeram ambos e falaram muitas vezes nas ditas cidades.(3)

Jorge Torres, Henrique Salvador Selozo, Henrique Selozo Castilho, Alferes Castilho… foram nomes que ele usou durante aqueles 10 anos, disfarçando a sua identidade, não apenas por receio de o conhecerem e matarem os familiares do malogrado Baltasar, mas também os esbirros da inquisição, que por toda a parte os havia.

Málaga foi a cidade castelhana onde primeiro se estabeleceu e viveu até 1666. E falecendo-lhe a mulher e o genro “quebrando” mais uma vez, foi-se para Madrid, passou à Galiza e depois à Mancha, trocando o nome e o vestuário, para não ser reconhecido, conforme ele próprio contou:

— Em todo o tempo não saiu da dita cidade mais do que à dita vila de Osuna e às feiras da Estremadura, Andaluzia, Ciudad Real, Vila Carrilho, Madrid, Castela-a-Velha e Mancha. E no ano de 1666 sucedeu quebrar o dito seu genro deixando-o empenhado a ele declarante, com fazendas que ele declarante tinha deixado ao dito seu genro e por esse respeito se ausentou da dita cidade de Málaga, para não ser preso, e se foi para Madrid onde assistiu 5 ou 6 meses no hospital S. João de Deus; e para não ser conhecido mudou o nome e se chamava Alferes Castilho; e dali passou à Galiza, em trajo de lavrador, para não ser conhecido; e não tinha lugar certo porque andava de feira em feira…(4)

Em janeiro de 1671, Henrique Selozo Salvador deixou Castela e foi morar para Vilar Torpim, terras de Ribacôa, na raia de Castela, sítio dotado de “aduana” e, por isso, privilegiado para negociar em ambos os países, que acabavam de assinar as pazes, ao fim de 28 anos de guerra. Vilar Torpim era uma espécie de plataforma comercial entre os dois países e eram muitos os mercadores que ali se fixavam temporariamente despachando e recebendo mercadorias e alguns deles foram depois chamados a testemunhar no processo que a inquisição lhe instaurou.

De janeiro a outubro de 1671, Henrique tocaria a sua vida com saídas pelas feiras da região. Em outubro atreveu-se a dar um salto até Lisboa, onde esteve 19 dias, hospedando-se numa estalagem do Beco das Comédias. No mês seguinte foi à feira de S. Martinho, na Golegã e dali passou a Lisboa. Ter-se-á esquecido que os “olheiros” da inquisição eram persistentes? Ou ele era um resiliente inveterado, em fuga constante?

A verdade é que, no dia 16 daquele mês foi avisto pelo mercador Batista Mariz, atrás citado e que contou:

— Esta manhã, indo aos açougues, viu estar tomando um carro a 3 homens, um dos quais, que é o mais velho, trás uma cabeleira postiça castanha e vestido de pano azeitona com casaca curta e abotoadas as mangas por diante, de 50 anos de idade, barba rapada, de pouco buço e pinta de branco, de meã estatura, magro e trigueiro, e este conheceu ele denunciante em Nice, sua pátria, onde se chamava Jorge Torres (…) e disse ser natural deste reino e professava a lei de Moisés.(5)

Ignoramos que interesses ligavam este mercador à inquisição de Lisboa. Sabemos é que ele trabalhava como espia para o familiar da inquisição António Ferreira, a quem foi de imediato, dar conta do sucedido e ambos foram espiar o suspeito à Rua Nova, e dali foram ter com o inquisidor Pedro Mexia. Não sem que antes o Ferreira encarregasse o vestimenteiro Manuel Pereira, outro de seus “bufos”, de seguir o suspeito e nunca o perder de vista. E antes, que fosse ter com o familiar João Andrade Leitão, que era “auditor”, para que, sob qualquer pretexto, levasse preso o mesmo suspeito para a prisão civil do Tronco, sem deixar perceber qualquer pormenor ligando tal prisão ao tribunal do santo ofício.

No dia seguinte foi o familiar António Ferreira encarregado de ir ao Tronco buscar o prisioneiro e entregá-lo nos Estaus e “enquanto o trouxe para os cárceres, que foi à boca da noite, observou que falava trémulo”.

Era o início de um longo calvário. Durante os anos em que andou fugido, a inquisição recolheu dezenas de denúncias de judaísmo feitas contra ele por gente que então passou pelas cadeias da inquisição. O caso era ainda mais grave por se tratar de um homem que tinha fugido sem cumprir a penitência que lhe fora imposta 19 anos atrás e por voltar ao judaísmo, não cumprindo o juramento que fizera.

Henrique, porém, era um resiliente e a sua resistência impressiona, mesmo do ponto de vista físico: durante 19 anos aguentou todas as agruras das húmidas e sombrias cadeias da inquisição de Coimbra e Lisboa e do Limoeiro! De resto, o seu volumoso processo é deveras interessante, a vários níveis. Por um lado, nele aparece a grande maioria dos seus correligionários de Vila Flor, em cenas e vivências as mais diversas, proporcionando um autêntico retrato da sociedade Vilaflorense da época. Defendendo-se perante os inquisidores, ela apresenta-se como o forasteiro, o homem que vem de fora, desprezado e criminalizado por todos os outros. Veja-se um excerto das suas declarações:

— Provará que em razão desta morte e ser o dito morto contratador das alfândegas de Trás-os-Montes e aparentado com toda a dita vila, por si e por sua mulher, filha de Dinis Álvares, com quem foi casado da primeira vez e da segunda vez estava desposado o dito morto com a dita filha de Pedro Henriques Ferro, na mesma vila, ficou ele réu odiado de todos os moradores daquela vila de Vila Flor, porque todos eram parentes uns dos outros e coligados por sangue e afinidade, e ele réu era forasteiro (…) temendo-se o réu dos sobreditos inimigos o matarem ou mandarem matar no Brasil…(6)

E essa foi a razão que apresentou para justificar a fuga para Castela e explicar que, sendo ele bom cristão e não tornando a judaizar depois que abjurou em 1652, aqueles inimigos lhe lançaram, malevolamente, as culpas por que estava preso. Esquecia-se, no entanto, que havia muitas mais denúncias contra ele, aportadas por gente de outras terras. E porque nos mostra o significado e a importância que para esta gente, que se tinha como vivendo em cativeiro, tinha o rito da circuncisão, transcrevemos a denúncia feita por Manuel Mendes Cardoso, o racha-broquéis, morador em Vila Chã, junto a Miranda, em 1661:

— Haverá 18 anos, em Escalhão, em uma casa que servia de aposento dos mercadores, se achou com Gaspar Jerónimo e com Henrique Lopes Pereira (…) e com Henrique Nunes, que ouviu dizer, já fora preso, e com Diogo Pereira, casado, e com Dinis Álvares, defunto e com Baltasar Cardoso, defunto, todos de Vila Flor, e estando todos juntos, por ocasião de ele ter vindo há pouco tempo de Liorne, se declararam. E acrescentando ele confitente que o principal fundamento da crença da dita lei era serem circuncidados e como eles o não eram, não a sabiam guardar.(7)

Resta dizer que Henrique Nunes saiu condenado em cárcere e hábito perpétuo sem remissão, diferenciado com insígnias de fogo e degredo por 3 anos em Castro Marim, no auto-da-fé de 10.5.1682. Resiliente, pouco tempo depois, já estava a pedir que lhe fossem perdoados os 3 anos de degredo…

Notas:

A imagem da assinatura foi cedida pelos ANTT e retirada do processo da inquisição de Lisboa, nº 2747.

1 - Manuel de Sampaio e Melo, senhor de Vila Flor, assistente na sua quinta, junto à vila de Sesimbra, deu o testemunho seguinte: — Recolhendo-se um Baltasar Rodrigues Cardoso às horas das Ave-Marias para uma estalagem aonde pousava, indo a cavalo, lhe meteram uma espada pelas costas de que morreu em poucos dias.

2 - O capitão do barco estivera preso com ele no Limoeiro e costumava andar no tráfico negreiro.

3 - Pº 2747-1, de Henrique Nunes.

4 - Idem.

5 - Ibidem.

6 - Ibidem.

7 - Ibidem.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães