NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - António Fernandes, o cortesão (n. T. Moncorvo c. 1505)

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Terá nascido em Almendra, terra de Ribacôa, sendo batizado em S. Martinho, concelho medievo de Penas Roias. O crisma tê-lo-á recebido em Bragança, assentando morada em Torre de Moncorvo, onde exercia a profissão de sapateiro e onde casou com Maria Fernandes, a maravilha, de alcunha, pelo ano de 1530.
De seus familiares, sabemos que os pais foram batizados em pé e tomariam então os nomes cristãos de Fernão Chaves e Branca Nunes. E sabemos que tinha uma irmã chamada Catarina Fernandes, casada em Mirandela e outra nomeada Francisca Nunes, casada em Vila Nova de Fozcôa.
Em 1535 foi metido na cadeia da comarca de Torre de Moncorvo, num processo algo estranho, possivelmente a mando do vigário geral da comarca, concertado com o juiz de fora, acusado de ser “mau cristão” pois que, na missa de domingo, se ia colocar “ao canto do altar de Santa catarina”, em local de onde não podia ver o sacerdote, com “tenção danada e diabólica” para não ver “alevantar a Deus”. Naquela prisão estaria uns 17 meses, sendo depois mandado para a cadeia da inquisição de Évora, com mais uma acusação: enquanto esteve preso, ninguém o viu rezar. Em Évora estaria preso uns 3 ou 4 meses, saindo por efeito do perdão geral concedido aquando da fundação do próprio santo ofício. (1)
Por mais de 20 anos viveu descansado em Torre de Moncorvo, trabalhando de sapateiro e vendo crescer 2 filhos e 3 filhas. A 20 de junho de 1558, Pero Fernandes Lima, pouco antes nomeado vigário geral da comarca pelo arcebispo Baltasar Limpo, mandou publicar um édito da fé chamando os fiéis cristãos a denunciar formalmente os “crimes” de que tinham conhecimento.
E assim apareceu uma testemunha dizendo que, 10 anos antes, em uma quinta-feira de Endoenças, entrando em casa do Cortesão, viu que tinham sobre a mesa uma galinha cozida, que logo escondeu. Acrescentou que em outra ocasião lhe ouviu dizer que “não podia crer que Nossa Senhora ficara virgem parindo”.
Outra testemunha apareceu a dizer que o vira em dias de domingo albardar a besta e sair a negociar pelas aldeias, ao passo que nos dias de sábado trabalhava menos que nos outros dias. E também disse que lhe ouviu chamar cães aos cristãos velhos, que eram descendentes dos Cananeus e que nisso apenas seguia Cristo que chamara cadela à Cananeia.
No livro das denunciações do vigário estava já registada, com data de 22.12.1552, a denúncia de uma testemunha “de idade de 15 anos, jurada e ratificada”, nos seguintes termos:
- Disse que indo a casa do réu o dia de Nª Senhora que caíra ao domingo e chamando à porta cerrada, a empuxara e entrara dentro e vira ter na mão a Isabel, filha mais velha do réu (…) uma roca na mão e lhe vira enrolar o fio no fuso e a maçaroca estava presa à manta e almofada, como que acabava de fiar quando ela testemunha entrara (…) a testemunha tem para si que ela acabara de fiar e por mor da testemunha tirara a roca dali.
Finalmente, António Fernandes era acusado de ter feito um comentário suspeito acerca de um menino filho de um cristão velho e de uma cristã-nova, dizendo: “o demo que te eu dou feito em pecado mortal”. E sendo repreendido, explicou que dissera aquilo “porque é como misturar vinho branco com vermelho”.
Os autos com estas denúncias constavam de 6 folhas de papel que o vigário Lima entregou a João Gonçalves Cordeiro, morador no Felgar, para levar à inquisição de Lisboa onde o Cortesão deu entrada em 15 de março de 1560. (2)
Vista a acusação e antes de passarmos à defesa, importa dizer que este processo é muito diferente dos que temos vindo a estudar, de datas anteriores, no que respeita aos estilos inquisitoriais. Com efeito, se antes as testemunhas eram apresentadas aos réus, agora os nomes das testemunhas são “calados” e os interrogatórios são feitos de um modo muito metódico.
Sobre a defesa apresentada pelo Cortesão, diremos que ela se concentrou em provar que por detrás de todos os testemunhos se encontrava o vigário geral, Pero Fernandes Lima e que todos eram seus inimigos declarados.
As razões da inimizade declarada entre o sapateiro e o vigário prendiam-se com a vida dissoluta do vigário que andava metido de amores com a mulher de um seu criado. E a sogra do criado, a “calva” de alcunha, é que “abria a janela” para o vigário entrar. E como a mulher do réu e a calva andaram em ralhos… tudo foi publicamente posto na rua, com o criado do vigário a ser tratado por “cornudo e alcoviteiro”.
António Fernandes explicou ao inquisidor Ambrósio Campelo que durante os dias que o teve preso em Torre de Moncorvo, o vigário andou “buscando e rogando” testemunhas falsas contra ele. E apontou, um a um, todas essas testemunhas, provando que por alguma razão eram também seus inimigos. Um deles seria o porteiro do vigário a quem o réu tinha apanhado em certa ocasião “com um couro furtado em um pelame de Fernão Rois”. Outro seria Gonçalo do Rego que o réu apanhou em relações ilícitas com uma sobrinha e a quem processou por uma dívida de 1000 réis de calçado.
Facto é que os inquisidores concluíram pelo “defecto da prova das ditas culpas vistas juntamente com a contrariedade do réu”. E as acusações contra a vida escandalosa do vigário geral da comarca não terão caído em saco roto, com o inquisidor Campelo a escrever no próprio processo de António Fernandes:
- E também se tomará informação ex ofício sobre o conteúdo nos artigos com que vem ao doutor Pero Fernandes Lima, vigário que foi da Torre de Moncorvo.
E a verdade é que, ainda o cortesão não tinha cumprido os 7 meses de sua prisão e já o licenciado Sebastião Veloso ocupava a cadeira de vigário geral da comarca de torre de Moncorvo, que Pero Lima mal chegou a aquecer. Terá sido determinante a informação prestada pelo Cortesão? Ou a mudança ficou a dever-se à nomeação de Frei Bartolomeu dos Mártires para arcebispo de Braga?
Voltemos atrás, aos interrogatórios conduzidos pelo inquisidor Campelo e que começaram com o réu a dizer que era muito bom cristão. Porém… apenas soube dizer o Pai-Nosso e “na Ave-Maria acrescentou algumas palavras; não sabia o credo, nem a salve-Rainha, nem outras orações; disse que os pecados mortais eram 10 e o primeiro era amar a Deus sobre todas as coisas”. Imagine-se a cara do inquisidor!
E também a cena passada em outra audiência com o réu a jurar que ao domingo nunca faltava à missa. E o inquisidor ripando de um papel que o vigário Lima tinha enviado com o réu e lendo:
- Hoje 10 de julho de 1559. Mando ao cura da vila da Torre que assiste na igreja e ofícios divinos a António Fernandes, cortesão, pagasse 6 réis a que foi condenado, pagasse ao meirinho, por deixar esta igreja onde está obrigado aos domingos e festas, e se ir pelas aldeias a contratar e assim pagar mais 10 réis a ele meirinho, das custas que se fizeram à sua ausência.
Razão tinha o novo arcebispo de Braga ao chamar a atenção para a ignorância religiosa dos cristãos e tomar a iniciativa de escrever o primeiro catecismo que a igreja católica conheceu. Exemplar, a este respeito o processo do Cortesão que terminou com a sentença a ser lida em mesa a 19.11.1560, registando “o defecto da prova das ditas culpas vistas juntamente com a contrariedade do réu” e decretando que António Fernandes fosse solto. Porém, constatando a sua ignorância da doutrina cristã, os inquisidores ordenaram que ficasse retido nas Escolas Gerais até ser bem instruído (…) e “ com isto satisfeito, seja solto e se vá em paz”.

NOTAS:
1-ANTT, inq. Évora, pº 7804, de António Fernandes. Em 19.4.1560, diria na inquisição de Lisboa: - Haverá mais de 25 anos o prendeu na vila de Torre de Moncorvo um juiz de fora que o mandou preso à santa inquisição à cidade de Évora onde esteve preso 3 ou 4 meses (…) e saiu livre por sentença sem pena alguma, a qual sentença tem em sua casa.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 9554, de António Fernandes.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães