Na hora da morte do pai do Regime

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O seu corpo baixou à terra mas Mário Soares vai continuar na História de Portugal ao lado de António Salazar e de Álvaro Cunhal, isto é, andará na berlinda sempre que o passado recente vier à baila.
Político peculiar, sem dúvida: cosmopolita, inspirado, espontâneo e folgazão. Tinha todos os defeitos dos políticos portugueses e algumas raras virtudes que só muitos poucos possuem.
Não é de espantar, portanto, que o Regime, no passamento do seu mais conhecido demiurgo, se tenha engalanado com pompa e circunstância, que os machuchos políticos se tenham multiplicado em loas e larachas e que as notícias do evento tenham saturado os meios de comunicação social.
Na Sala dos Azulejos do Mosteiro dos Jerónimos, templo sagrado que serviu a odisseia dos Descobrimentos, teve lugar uma comovente manifestação cultural e social do mais alto gabarito e simbolismo, exultação da família eterna e universal, esplendor de sucesso e virtude. A família Soares, no caso vertente, ganhou assim especial relevância na hora da morte do seu patriarca, republicano, socialista e laico.
Depois, fazendo lembrar tempos de glória imperiais, muito embora se não aclamasse rei ou herói de campanhas ultramarinas, nem o povo tenha comparecido em peso como se pretendia, o féretro percorreu, em dia enublado, as ruas de Lisboa, que continua a ser cidade de muitas e desvairadas gentes.
Povo que lamentavelmente se manifestou mais veementemente nas redes sociais com invariáveis comentários, injustos e soezes, que em nenhuma circunstância merecem ser aplaudidos.
Admirado por muitos, detestado talvez por mais, que justa ou injustamente se sentem lesados pela sua acção, Mário Soares marcou indelevelmente o Regime vigente, desde logo com o seu decisivo contributo para a sua formatação.
Os seus mais exacerbados detractores julgam-no, erradamente em meu entender, traidor, mas os seus admiradores mais esclarecidos consideram-no o heróico “pai da democracia”, ou do “regime”, epíteto que segundo certos cronistas, o próprio recusava.
O que me leva a evocar o velho aforismo popular que diz que quando a criancinha nasce linda e escorreita não falta quem queira ser o pai, mas quando é feia e disforme ninguém assume a paternidade. Poderá ser é o caso.
Mário Soares teria a percepção de que o Regime que ajudou a erguer se revelou laxista, corrupto e gerador de crises e desigualdades, contrariamente ao pretendido. Compreende-se que não lhe tenha caído no goto tal título, portanto.
A verdade é que Mário Soares se agigantou na resistência à ditadura comunista que ameaçava amordaçar a democracia nascente e foi o maior obreiro da integração de Portugal na Comunidade Europeia, malgrado os desencantos que a União hoje em dia motiva.
Não foi de Mário Soares que o povo se alheou na hora da sua morte. É com o Regime de que Mário Soares foi o principal inspirador que o povo anda de candeias às avessas.

Este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico.
 

Henrique Pedro